Valor Econômico, v. 20, n. 4874, 06/11/2019. Opinião, p. A10

Pacote de reformas faz cerco à irresponsabilidade fiscal



Do pacote de reformas enviadas ao Congresso, a que mais interessa a curto prazo é a emergencial, que permitirá um alívio de R$ 24,7 bilhões já em 2020. Três propostas de emenda constitucional foram apresentadas - cada uma exigindo duas votações na Câmara, duas no Senado, com apoio de três quintos dos parlamentares - e provavelmente nada será aprovado este ano. De maneira geral as medidas vão no caminho correto e necessário de reforçar a responsabilidade fiscal de todos os níveis de governo,rearrumar o orçamento público, com desvinculações, e conceder maior autonomia a Estados e municípios na gestão de seus recursos, que serão reforçados com a transferência de R$ 400 bilhões em 15 anos provenientes dos royalties do petróleo, pelas previsões oficiais. A contrapartida em responsabilidades e obrigações dos entes federados está em grande parte no Plano Mansueto, parado no Congresso.

Há uma série de boas ideias contidas nas propostas feitas ontem pelo ministro Paulo Guedes, mas elas exigem uma força de arregimentação política que o governo está longe de possuir - e sequer se esforça para isso. São mudanças radicais - apenas a partir de 2026, daqui a duas eleições. Os benefícios fiscais, que consomem perto de 4% do PIB não poderão ultrapassar 2% do PIB, e serão reavaliados a cada 4 anos.Também daqui a 4 anos a União só dará aval a Estados e municípios para empréstimos com organismos internacionais e ficará proibida de socorrer entes federados em dificuldades financeiras. As chances de que essas propostas prosperem são perto de nulas.

O governo compra também uma boa briga política com os entes federados ao tentar corrigir a danosa proliferação de municípios totalmente dependentes das receitas de repasses. Pela proposta, municípios com menos de 5 mil habitantes que tenham arrecadaçãoprópria inferior a 10% da receita total serão incorporados aos vizinhos. Haverá novas restrições à criação de novas cidades. Um terço dos municípios com menos de 20 mil habitantes, segundo pesquisa recente da Firjan, ou 1.872 cidades, tem 90% de suas receitas advindas de transferências de União e Estados.

Para obter mais recursos, ou menos despesas, a curto prazo, o governo propõe a extinção dos fundos, entre os 281 existentes, que não são constitucionais. A PEC estabelece que eles sejam extintos 2 anos depois dela ter sido aprovada pelo Congresso. Esses fundos acumulam hoje R$ 220 bilhões em recursos, que seriam usados para abatimento de dívida pública e os novos recursos, até a extinção, em programas de erradicação da pobreza e reconstrução nacional (supõe-se que o governo se refira a investimentos em infraestrutura). Para a criação de novos fundos com vinculação de recursos será necessária a aprovação de lei complementar.

São importantes e merecem aprovação as medidas listadas para enfrentar emergências fiscais, como a que o Brasil vive desde 2014, produzindo déficits primários por seis anos consecutivos. A PEC vem para corrigir lacuna do teto de gastos, que não permitia gatilhos que evitassem o estouro. Na prática, o teto tem sido descumprido legalmente, por meio de autorização de crédito pelo Congresso, claramente um arranjo de péssima qualidade. Em 2019, dependiam dessa aprovação R$ 248,9 bilhões, montante que no ano que vem sobe a R$ 367 bilhões.

O estado de emergência fiscal, na prática, entraria em vigor logo após a aprovação da PEC. As medidas são uma lista de compressão de gastos, alguns deles constantes da lei de responsabilidade fiscal e, de certa forma, de um desejo do que sempre se quis que União, Estados e municípios fizessem para corrigir desequilíbrios e nunca fizeram -

especialmente os últimos. A PEC permite a redução de 25% da jornada dos servidores, com redução de vencimentos. As despesas obrigatórias não terão correção pela inflação. E uma longa série de proibições entrariam em campo: de reajuste, reestruturação de carreiras, promoções, criação de cargos, concursos públicos, criação de mais despesas obrigatórias e benefícios tributários etc.

O racionamento radical de despesas entraria em vigor com a aprovação pelo Congresso, no caso da União - medidas válidas por 1 ano e renováveis pelo tempo necessário - e no caso dos Estados quando a despesa corrente ultrapassar 95% da receita corrente líquida, por dois anos. As medidas corrigem falhas na lei de responsabilidade fiscal, um marco na disciplina das contas públicas. Mas as melhores leis não sobrevivem sem punição a seu descumprimento. Faltam detalhes a respeito.