Título: Cenas de atraso
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 22/09/2005, Opinião, p. A10

Num dia histórico para a Câmara, que finalmente se livrou de um de seus maiores desastres políticos com a renúncia do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), o Congresso revelou seu verdadeiro crepúsculo: o constrangedor bate-boca entre parlamentares que participaram do depoimento do banqueiro Daniel Dantas, na sessão conjunta das CPIs dos Correios e do Mensalão. Perdeu-se uma oportunidade sem par. Deputados e senadores estavam, afinal, diante de um homem capaz de ajudar a iluminar os porões de um passado recente da corrupção no país. Mostraram-se incompetentes para o embate. Em vez de se prepararem para vencer a conhecida esperteza de Dantas - habituado a responder por que invariavelmente está presente à cena do crime -, os parlamentares engolfaram-se numa interminável discussão cujo único beneficiário foi o próprio depoente, resultando numa paralisação que turvou os passos seguintes do depoimento.

A partir das acusações iniciais da senadora Ideli Salvatti (PT-SC), petistas e tucanos optaram pelos torpedos acerca dos tentáculos de seus partidos com o banqueiro. As investigações em curso apontam Dantas como um dos provedores de gravetos das contas de Marcos Valério de Souza. Por outro lado, como o mago das privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, o banqueiro é detentor de segredos insondáveis, dos quais não eram raros os tucanos insones com a possibilidade de Dantas resolver assumir a condição de incendiário.

Tisnado pela inabilidade dos inquisidores, o depoimento, viu-se, pouco acrescentou à elucidação dos negócios paralelos montados com dinheiro público suficiente para privatizar o Estado em odiosas negociatas. Apesar disso, reafirmaram-se as evidências de que Dantas sempre contou com a proteção de poderosos homens públicos deste país, íntimo de senadores, deputados e ministros de Estado.

O constrangimento do bate-boca soma-se à extensa lista de impropriedades cênicas constatadas no palco das CPIs em andamento. Já se insistiu aqui, por exemplo, contra os sucessivos exemplos de má educação revelados em cadeia nacional. Conversas ao telefone, bocejos, perguntas excessivas, questionamentos inconvenientes, solicitações disparatadas, entre outras idiossincrasias, adornaram as cenas grotescas de exibicionismo e insensatez parlamentar, que prejudicaram o andamento dos trabalhos. A tais inconveniências acrescente-se a contraproducente carga de 12 a 14 horas de atividade praticamente ininterrupta.

No terreno fértil do empolamento das investigações, fala-se muito, pouco se explica.

Se interrogadores e interrogado não homenagearam o decoro, como esperavam os cidadãos de bem, restou de ontem o alento da renúncia do presidente da Câmara. Na terra arrasada em que se transformou o Congresso (hoje entranhado em uma vasta teia de mordomias, ineficiência e paralisia), Severino simbolizava muito mais do que um equívoco político de quem o elevou ao terceiro cargo mais importante da República. Representava um Congresso de credibilidade popular à beira do abismo. Severino poderia ter ajudado a incluir na agenda parlamentar reformas em prol do fortalecimento do Legislativo, hoje um semi-apêndice do Executivo. O processo decisório do Congresso, afinal, tem sido obra e graça de poucos atores. Superar essa tendência elevaria o nível dos parlamentares no longo prazo. Severino, porém, não esteve à altura da tarefa que lhe foi conferida.

''Voltarei'', avisou, numa de suas últimas palavras como presidente da Câmara. ''O povo me absolverá''. Convém torcer para que a frase resuma-se a um lugar comum do adeus. Se a sensatez prevalecer, não serão reconduzidos ele e outros incontáveis exemplos de despreparo, malandragem e atraso que hoje ocupam a maioria das cadeiras do Congresso.