O Globo, n. 32655, 02/01/2023. Política, p. 4

A terceira posse



Vinte anos depois de chegar à Presidência da República pela primeira vez, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu ontem o seu terceiro mandato enaltecendo a democracia e sinalizando para os eleitores que não votaram no PT nas eleições de outubro. Enquanto em 2003 o discurso focou em críticas pontuais ao modelo econômico do antecessor, desta vez as falas no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto miraram de forma contundente o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o seu “projeto autoritário de poder” e a necessidade de “reconstrução” do país a partir de um “diagnóstico estarrecedor” encontrado pelo gabinete de transição.

— Sob os ventos da redemocratização, dizíamos: ditadura nunca mais. Hoje, depois do terrível desafio que superamos, devemos dizer: democracia para sempre — disse Lula, sentado ao lado dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PPAL), do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber.

Pouco depois, discursando para dezenas de milhares de apoiadores, Lula prometeu governar para os mais de 200 milhões de brasileiros, dirigindo-se àqueles que se opuseram à sua vitória em outubro passado. O petista afirmou que é hora de “reatar laços com amigos e familiares, rompidos por discurso de ódio e disseminação de tantas mentiras”.

— Vou governar para todas e todos, olhando para o nosso luminoso futuro em comum, e não pelo retrovisor de um passado de divisão e intolerância. A ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia —declarou.

Com ausência de Bolsonaro, que recusou-se a transmitir o cargo e deixou o país na última sexta-feira, o protocolo da posse foi modificado. Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado por oito representantes da sociedade civil, incluindo uma catadora, um metalúrgico, uma pessoa com deficiência e uma criança negra, e o grupo fez a passagem da faixa (mais detalhes na página 8).

A cerimônia começou no início da tarde com um desfile em carro aberto a bordo do Rolls Royce, tradição colocada em dúvida pela equipe de segurança do presidente na semana passada devido ao receio de incidentes durante o evento. O deslocamento do veículo no percurso pela Esplanada dos Ministérios contou com cerca de 40 policiais no seu entorno, um recorde em relação a posses anteriores. No carro, Lula foi acompanhado pela a primeira-dama, Janja, o vice-presidente Geraldo Alckmin e sua mulher, Lu Alckmin — uma versão renovada da imagem da posse de 2003, quando desfilou ao lado do então vice-presidente José Alencar.

Caráter inédito

Empossado após se tornar o primeiro brasileiro a vencer três eleições presidenciais desde a Proclamação da República em 1889, Lula ressaltou ter sido eleito novamente graças à formação de uma “frente ampla”. Também lembrou a reviravolta experimentada por ele mesmo nos últimos anos. Preso pela operação Lava-Jato em 2018, em meio a um profundo desgaste do PT desde a deposição de Dilma Rousseff dois anos antes, Lula recuperou em 2021 o direito de se candidatar e encabeçou a oposição a Bolsonaro, atraindo apoios de partidos que haviam engrossado o apoio ao processo de impeachment da aliada.

Após chegar ao Congresso na tarde de ontem, Lula fez um discurso de cerca de 30 minutos no qual elogiou a “atitude corajosa” do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na condução das eleições presidenciais até a apuração dos votos, para “prevalecer a verdade das urnas sobre a violência de seus detratores”. Em outro aceno aos Poderes, cumprimentou a Câmara e o Senado pela “sensibilidade” na aprovação da PEC da Transição, que pode ampliar o teto de gastos em cerca de R$ 200 bilhões, dos quais R$ 70 bilhões vão para custear o valor de R$ 600 pago pelo Bolsa Família.

Tendo o desafio de apresentar até o fim do primeiro semestre uma proposta de âncora fiscal para a economia, Lula usou mais uma vez as suas falas para atacar o teto de gastos, aprovado no governo Michel Temer.

— O SUS é provavelmente a mais democrática das instituições criadas pela Constituição de 1988. Certamente por isso foi a mais perseguida desde então, e foi, também, a mais prejudicada por uma estupidez chamada teto de gastos, que haveremos de revogar.

Lula também usou seus discursos para destacar a necessidade de repetir seu compromisso de combate à fome, enunciado na posse de 2003. Chegou a se emocionar, indo às lágrimas, ao citar situações  que escancaram o avanço da fome e da miséria, como as filas em açougues de pessoas em busca de ossos. Horas depois, vieram os anúncios das primeiras medidas do novo governo: além da revogação de atos liberando o acesso às armas, houve ainda a divulgação de medidas nas áreas ambiental e de sigilo de documentos públicos (mais detalhes nas páginas 9 e 10).

Mais partidos e mulheres

O ministério empossado por Lula já no início da noite é o mais numeroso de seus três mandatos, com 37 nomes, e contemplou um maior número de partidos, nove, do que no início de suas primeira e segunda gestões. O petista também nomeou também mais mulheres desta vez, 11. O número é superior ao do somatório de 2003 e 2007, mas ainda distante de uma paridade com homens, que ocuparão 26 cadeiras na Esplanada. A volta do Ministério da Cultura, extinto por Bolsonaro em 2019, foi destacado pelo novo presidente.

— Estamos refundando o Ministério da Cultura, com a ambição de retomar mais intensamente as políticas de incentivo e de acesso aos bens culturais, interrompidas pelo obscurantismo nos últimos anos —sentenciou.