O Globo, n. 32655, 02/01/2023. Política, p. 16-17

Para ficar de olho em 2023

Marlen Couto


Após uma eleição acirrada e que realçou as divisões do país, a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, marcará o retorno do Partido dos Trabalhadores ao centro do poder. O ano começa com as expectativas sobre como se dará a relação do novo governo com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mas também sobre como se reorganizará a base bolsonarista na oposição e qual será o papel de Jair Bolsonaro (PL), que deixa os holofotes do Palácio do Planalto.

No Legislativo, a agenda econômica deve sobressair, sem deixar espaço para pautas de costumes, como ocorreu nos últimos quatro anos, em um reflexo da composição ainda mais conservadora do Parlamento. No STF, as atenções se voltam para o tratamento que será dado aos ataques à Corte e à democracia, que seguem mobilizando o bolsonarismo pelo país.

O GLOBO reuniu abaixo os principais temas e dúvidas sobre como será 2023 nos Poderes e na sociedade civil. Para traçar o quebracabeça, foram consultados especialistas de diferentes campos de conhecimento, da Ciência Política ao Direito e Economia.

Oposição conservadora terá mobilização inédita diante de novo governo

É consenso que, em 2023, o bolsonarismo seguirá mobilizado e demandará reação do governo Lula. A dúvida é sobre como se dará a oposição ao Planalto, que no momento se organiza em torno da pauta golpista de contestação do resultado das urnas. Do outro lado, Lula buscará manter coesa uma base social diversa e que corre o risco de se frustrar diante das concessões necessárias à governabilidade, especialmente no Congresso.

Para o professor de Ciência Política Josué Medeiros, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a tendência é a oposição bolsonarista se voltar mais para as redes sociais e priorizar o discurso antissistema de Jair Bolsonaro (PL) centrado na ideia de “perseguição” das instituições contra o expresidente. Outro elemento é o ineditismo que essa oposição mais aglutinada e ancorada em pautas conservadoras vai representar.

Manter a popularidade, após uma eleição com placar dividido, em patamares razoáveis vai ser um dos desafios de Lula. Nos últimos anos, a aprovação da grande maioria dos chefes de Estado da América Latina anda em baixa. Um exemplo é o presidente do Chile, Gabriel Boric, que viu a avaliação positiva de seu governo se deteriorar em poucos meses no cargo.

— Por isso, Lula investiu tanto na PEC da Transição. Ele precisa dar respostas imediatas a aspectos que melhorem a vida das pessoas. É um modo de diminuir o impacto de um tipo de oposição que o PT enfrentou no máximo em 2015, com o enfraquecimento do governo Dilma Rousseff —analisa Medeiros.

Liderança

A cientista política Mara Telles, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defende que Bolsonaro seguirá protagonista no campo da extrema-direita. O apoio de parte dos evangélicos e dos militares é um ativo. Na avaliação da especialista, uma saída para Lula garantir governabilidade, se persistirem manifestações antidemocráticas, e isolar Bolsonaro, é uma articulação com os governadores.

— Bolsonaro não está afastado dos atos radicais, pelo contrário. O fato de ficar em silêncio é uma folha em branco para que os seus seguidores atribuam aquilo que desejam —diz Telles. —

Esses grupos não desistirão, assim como não desistiram nos Estados Unidos. Mesmo que eles não partam para mais atos de violência, há no Congresso uma série de membros que continuarão agindo. Se são minoritários, é outra coisa. Eles fazem barulho, têm visibilidade. O fato de estarem na oposição os acirra.

O barulho da base bolsonarista será ouvido especialmente nas redes sociais. Diretor da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas, Marco Aurelio Ruediger avalia que a base bolsonarista precisará de um tempo para reorganizar seu discurso e seguirá amparada com sua máquina poderosa de disseminação nas redes com capacidade para impactar no debate.

— O governo não tem opção anão ser te ruma estratégia forte para o debate digital. E ades informação é uma coisa que requer atenção. O governo precisarás e reorganizar digitalmente para fazer esse enfrentamento e construir narrativas, respondendo em tempo real. Não só apressão formal, do Congresso, mas também dos grupos de apoio ou de oposição na sociedade civil —diz Ruediger.

Na base de Lula, há expectativa com a revogação de atos do governo Bolsonaro, o que começou a ser implementado ontem. Outro tema caro aos apoiadores de Lula é a pauta da diversidade, tema que o petista trouxe para a campanha eleitoral. Nas indicações para ministérios, mulheres e negros seguem com representação abaixo do que têm como um todo na população brasileira, em que são maioria.

— Lula tende a manter um padrão de insulamento da questão da diversidade em pastas específicas, em vez de um olhar mais transversal. Talvez seu governo busque matizar isso com as indicações do segundo escalão — pontua o professor de Sociologia e Ciência Política Luiz Augusto Campos, da Universidade do Estado do Rio (Uerj).

— Traduzir o tema na prática é difícil porque os partidos políticos que compõe o governo, e o PT incluído, avançaram menos do que o discurso na diversidade.

No Legis­la­tivo, pauta eco­nô­mica e ambi­en­tal com rumos dis­tin­tos

A agenda econômica será a prioridade dos parlamentares e do novo governo no ano que vem. No radar, estão ao menos duas pautas centrais para os primeiros meses do ano: a reforma tributária, que é tida como um possível legado da nova gestão, e uma nova âncora fiscal, substituta do teto de gastos. À frente da articulação estará o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Ter governabilidade será fundamental para fazer avançar a pauta econômica. Lula articulou, antes mesmo da posse, uma composição com legendas do Centrão. A aprovação da PEC da Transição, que abre espaço orçamentário para o petista honrar promessas de campanha, trouxe indicativos de quais partidos tendem a se somar ao Planalto, ainda que haja renovação de parte das cadeiras do Congresso no ano que vem. A proposta avançou, por exemplo, com o apoio do MDB, PSD, União Brasil e do PP. Outro indicativo da busca por governabilidade foi o acordo para remanejar recursos do orçamento secreto, julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A costura de apoio será fundamental. No pleito de outubro, uma composição ainda mais conservadora no parlamento foi eleita nas urnas. A correlação de forças é mais desfavorável no Senado, cujas lideranças receberam atenção especial de Lula durante a transição. Ao todo, os partidos do campo da esquerda (PT/PCdoB/PV, Psol/Rede, PSB e PDT) contarão com apenas 24% da Câmara e 16% do Senado.

— O perfil mais conservador do Congresso servirá como uma trava. Lula tenta construir uma base, mas ela não será no estilo cheque em branco. Mesmo atraindo setores do Centrão, é improvável que essa base apoie uma agenda muito progressista — explica o economista e professor da Fundação Dom Cabral Bruno Carazza.

Costumes e meio ambiente

Entre as pautas que devem encontrar resistência está a agenda relacionada à diversidade, aponta Luiz Augusto Campos, da Uerj. Sob a ótica conservadora, a pauta moral e de costumes também não andou no parlamento durante o governo Bolsonaro.

Transversais em todos os ministérios do próximo governo, segundo declarações de Lula, temas ambientais podem ser outro ponto de dificuldade. Ainda que parte dessa agenda possa ser conduzida exclusivamente pelo Executivo, que terá a tarefa de rever medidas adotadas no governo Bolsonaro, regras de licenciamento ambiental, propostas que aumentem áreas de preservação ou novas políticas de proteção aos povos indígenas esbarram nos interesses da bancada do agronegócio no parlamento.

— É verdade que o bolsonarismo cresceu, mas o crescimento mais substantivo é o de um conservadorismo fisiológico tradicional no Congresso. Essas pautas terão dificuldade de avançar, mas é preciso dizer que tradicionalmente não avançaram no Congresso e, sim, no STF. Exemplos são o casamento entre pessoas do mesmo sexo e decisões fundamentais sobre células-tronco e ações afirmativas —analisa Campos.

Outra articulação que ditará o tom da relação entre Executivo e Legislativo é a eleição para o comando das Casas. O PT sinaliza que apoiará a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara e busca um acordo para controlar postos-chave da Casa, como a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

— O ano vai ser do Lira, se vai ser reeleito ou não. Tudo indica que será. Mas o recente julgamento do orçamento secreto pode mexer com esse tabuleiro. Pode emergir algum outro polo, que imagino que vai ser também de centro-direita —opina José Medeiros, da UFRJ.

Uma agenda de interesse do governo Lula que deve entrar no radar do Congresso é uma regulamentação das redes sociais. O projeto de lei 2630, conhecido como PL das Fake News, empacou na Câmara por falta de acordo. Especialista em direito digital e VicePresidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ, a advogada Samara Castro ressalta que a indicação de Estela Aranha para a área de assuntos digitais no Ministério da Justiça sinaliza uma postura mais crítica às plataformas:

— Existe uma preocupação do governo Lula em construir uma base efetiva para essa discussão. O PL 2630 talvez esteja um pouco obsoleto porque estava preocupado com a desinformação, mas ainda não tinha lidado com a radicalização, com esse nível de questionamento à democracia. Será um projeto para o começo do ano porque é essencial. O Judiciário também precisa dele.

O retorno aos temas cons­ti­tu­ci­o­nais após qua­tro anos de emba­tes

Foco de ataques antidemocráticos durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá um ano marcado pela diminuição de temperatura —ao menos na relação com o governo federal. O cenário, no entanto, pode não ser o mesmo em relação ao Congresso. A decisão do plenário da Corte que sacramentou a inconstitucionalidade do orçamento secreto desagradou parlamentares do Centrão, em especial o presidente da Câmara, Arthur Lira, e pode trazer novos atritos na relação entre os dois Poderes.

— Lula já está dando vários sinais de que pretende ter um bom relacionamento com o Judiciário. Já com o Legislativo, não sabemos. Já vimos um foco de tensão. O Legislativo se queixa, muitas vezes sem nenhuma razão, de intervenção do Judiciário naquilo que seria exclusivo do Legislativo. Pode ser que haja alguma tensão — aponta o professor de Direito Constitucional da Uerj Daniel Sarmento.

O tribunal atuou nos últimos anos para conter medidas controversas do governo Bolsonaro. Agora, na avaliação de Sarmento, ganha condições políticas de avançar em temas constitucionais. Uma das pautas no radar da Corte é a segurança pública, com o julgamento da “ADPF das favelas”, como ficou conhecida a ação em que o tribunal estabeleceu critérios para que sejam realizadas incursões policiai sem comunidades, e a crise do sistema penitenciário, em meio à explosão de presos no país.

O marco temporal das terras indígenas, que tramita desde 2016, é outra promessa para 2023. Na ação, os ministros analisam se a demarcação de terras indígenas deveria seguir o critério do marco temporal, no qual indígenas podem reivindicar apenas terras já ocupadas antes da data de promulgação da Constituição de 1988.

Ataques à democracia

Em meio aos atos antidemocráticos, a presidente da Corte, ministra Rosa Weber, buscou evitar pautar temas sensíveis, estratégia que deve se manter no ano que vem. Exemplos são o reconhecimento do bullying homofóbico e a possibilidade de tornar legal o aborto até a 12ª semana de gravidez, ambos engavetados.

— O Supremo sentiu que há segmentos muito representativos da sociedade brasileira conservadores nos temas morais, o que envolve, por exemplo, direitos sexuais e reprodutivos, como o aborto. Eu não apostaria minhas fichas no Supremo entrando profundamente nessa agenda nesse próximo ano — acrescenta Sarmento.

Um dos desafios do Judiciário será, por outro lado, dar uma resposta institucional aos atos antidemocráticos. O corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, abriu duas investigações, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para apurar condutas ligadas ao presidente Jair Bolsonaro durante as eleições. Nas duas ações, o PT pede a inelegibilidade de Bolsonaro. Inquéritos sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que miram ataques às instituições, são outro elemento de pressão.

— Há preocupação com o fato de não ter o TSE tão apto assim, como tivemos no período eleitoral, para lidar com o tema das fake news e dos ataques à democracia. A expectativa é justamente que o STF comece a protagonizar mais essa discussão. Um debate que teremos é quem terá a competência nisso. Quem é detentor do julgamento? Quem é o juiz natural dessa discussão? —pondera Samara Castro, da OAB-RJ.

Marco Aurelio Ruediger, da Escola de Comunicação da FGV, destaca que há limites para a atuação do tribunal no tema:

— O Judiciário vai buscar alguns casos exemplares de punição em relação à questão da desinformação, das fake news, das estratégias de construção de ecossistemas nas redes para pressionara democracia. Existe, porém, toda uma área ainda meio cinzenta sobre os limites desse tipo de regulação.

Há expectativa ainda sobre quais serão as indicações de Lula para o Supremo. Duas vagas serão abertas ao longo do ano com as aposentadorias compulsórias dos ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, devido à idade. Ambos foram nomeados para o posto de ministro da Corte em governos petistas. Outra decisão com repercussão no Judiciário será a escolha do novo procurador-geral da República. O mandato de Augusto Aras se encerra em setembro. Lula já declarou não tero compromisso de seguira lista tríplice do Ministério Público Federal.