O Estado de São Paulo, n. 46792, 27/11/2021. Internacional p.A20
Volodmir Zelenski envolve magnata ucraniano em conspiração para derrubar seu governo e critica mobilização de tropas russas na fronteira
O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, afirmou ontem que um grupo de russos e ucranianos planeja um golpe na Ucrânia na próxima semana e os conspiradores tentaram obter a ajuda do homem mais rico do país, Rinat Akhmetov. Segundo Zelenski, gravações de áudio, obtidas pelos serviços de segurança ucranianos, flagraram golpistas discutindo seus planos e mencionando o nome de Akhmetov.
O magnata ucraniano tem negócios que vão desde mineração e energia até bancos, telecomunicações, imóveis e mídia. Com um patrimônio líquido estimado pela revista Forbes em mais de US$ 7 bilhões, Akhmetov é mais rico do que os outros três magnatas ucranianos juntos. Ele também é o maior contribuinte e empregador do país, com cerca de 20 mil funcionários.
Zelenski fez questão de frisar que o empresário não estava envolvido no plano de golpe. Apesar da acusação, o presidente ucraniano não apresentou provas, áudios ou outros detalhes, deixando muitas perguntas sobre os motivos para tornar pública as acusação e quais as ações foram tomadas.
Zelenski disse não acreditar que uma tentativa de golpe fracassaria e não teria apoio do Exército.
DESAVENÇAS. A imprensa ucraniana comentou nas últimas semanas sobre as crescentes tensões entre Zelenski e Akhmetov. O presidente ucraniano lançou uma campanha de "desoligarquização" do país, para reduzir a influência política das pessoas mais ricas da Ucrânia, que controlam setores importantes da economia.
"Estou indignado com a disseminação dessa mentira, não importa quais sejam os motivos do presidente", disse Akhmetov.
"Minha posição foi e será explícita e definitiva: uma Ucrânia independente, democrática e unida, com a Crimeia e minha região natal, e Donbass (região separatista no leste da Ucrânia)."
A Rússia rejeitou ontem as acusações e culpou os EUA por aumentar as tensões na região. Moscou também acusou Kiev de "provocações" em seu conflito com separatistas prórússia, que deixou 13 mil mortos e foi desencadeado após a Rússia anexar a Crimeia, em 2014.
Os comentários de Zelenski foram feitos em um cenário de crescentes tensões entre Kiev e Moscou. Oficiais de inteligência dos EUA e membros do alto escalão do Exército ucraniano disseram que mais de 92 mil soldados russos estão concentrados no norte e no leste da Ucrânia – muitos na área ao redor de Yelnya, perto da fronteira da Rússia com a aliada Belarus – e na Crimeia.
ESCALADA. As razões para o aumento de tropas russas não são claras, mas os EUA, diplomatas ocidentais e analistas dizem que pode ser a preparação para uma invasão ou uma escalada no conflito de sete anos no leste da Ucrânia, com insurgentes russos apoiados por Moscou.
O presidente ucraniano disse ontem que estava preparado para qualquer cenário. "Temos total controle de nossas fronteiras e estamos prontos, caso haja uma escalada." Zelenski acrescentou que a Ucrânia recebeu promessas de apoio de parceiros ocidentais, caso a Rússia tome medidas militares. "Quando a Rússia diz que está defendendo suas fronteiras, isso é muito perigoso", afirmou Zelenski.
PRETEXTO. Para o presidente ucraniano, a Rússia vem buscando um pretexto para intervir militarmente na Ucrânia, e citou como exemplo as críticas de Moscou ao envio de soldados da Otan ao território ucraniano e as acusações de que Kiev boicotará o processo de paz com os separatistas.
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, repetiu ontem as preocupações ocidentais com a concentração de tropas russas na fronteira e alertou que, se a Rússia usar a força contra a Ucrânia, "isso terá custos e consequências".
O presidente americano, Joe Biden, disse ontem que, provavelmente, conversará com os presidentes da Rússia e da Ucrânia em uma tentativa de reduzir a crescente tensão causada pela mobilização militar russa. / WP, NYT, AP e AFP
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ANÁLISE: KADRI LIIK
Quem observou o comportamento da Rússia nos meses recentes poderia pensar que os líderes do país estão tentando irritar o Ocidente. Em setembro, o Wagner Group, empresa militar privada com base na Rússia, deu as caras no Mali, enfurecendo a França. Em outubro, Moscou rompeu laços diplomáticos com a Otan.
Este mês, relatos de que a Rússia enviou 100 mil soldados para a fronteira com a Ucrânia levaram os EUA a alertarem que uma invasão pode ser iminente. E, nesse meio tempo, a Rússia se manteve ao lado de seu aliado, o presidente belarusso, Aleksander Lukashenko, enquanto ele arquitetou uma crise migratória na fronteira com a Polônia.
Mas o quadro é mais complicado. É verdade que a Rússia ainda considera o Ocidente seu principal adversário, mas a política externa do país está mais do que nunca orientada pela necessidade de aprender a operar em um mundo que não é mais dominado pelos países ocidentais. Com a exceção da Ucrânia – cujo controle parece ser o grande objetivo pessoal do presidente Vladimir Putin –, o Kremlin está operando cautelosamente em um mundo que considera fragmentado.
Ainda assim, o Ocidente, considerando a Rússia um rival implacável, encontra conspiração onde pode ser que haja apenas caos. Moscou com frequência comete um equívoco similar e supõe que o Ocidente também quer sua ruína. Essas perspectivas ultrapassadas, exacerbadas pelo isolamento imposto pela pandemia, são perigosas – levando, na melhor das hipóteses, ao desentendimento; e, na pior, ao confronto. E onde houver ameaça tangível de alguma escalada nas tensões, como na Ucrânia, é importante que cada lado considere o outro com claridade.
O novo mundo é tão caótico que Moscou parece considerar fútil qualquer planejamento de longo prazo. Para navegar nesse ambiente, a Rússia faz experimentos com intrusões paramilitares, trabalha para obter influência, vale-se de medidas limitadas ou temporárias e, com frequência, escolhe fazer pouco, em vez de muito. Há um objetivo que permeia os movimentos de Moscou. Trata de ajustar-se a um mundo definido agora principalmente pela competição entre EUA e China. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO