O Globo, n. 32657, 04/01/2023. Brasil, p. 9

Para todes

Alice Cravo


Todas e todos que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós”. Com essas palavras, o filósofo, escritor e professor universitário Silvio Almeida emocionou em seu discurso de posse e, sobretudo, marcou um largo divisor de águas entre ele e a ex-ministra Damares Alves, que esteve quatro anos à frente da pasta durante o governo Jair Bolsonaro.

Na fala, que logo viralizou nas redes sociais, Silvio Almeida, que assumiu como ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, enumerou um amplo espectro de minorias da sociedade brasileira, negros, indígenas, pessoas com deficiência, LGBTQIA+ — de gays e ao intersexo —, mulheres, idosos e anistiados políticos, famintos e sem-teto. Um contraponto já que a ex-ministra ficou conhecida por ter dito, em 2019, que “meninos vestem azul, meninas vestem rosa”.

— Com esse compromisso, quero ser ministro de um país que põe avida e a dignidade em primeiro lugar— disse o novo ministro.

Silvio Almeida lembrou, logon o início, a metade reduzir os homicídios de jovens negros e, para isso, anunciou que vai se articular com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. No ano passado, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública reuniu dados mostrando que negros foram, em 2021, 77,6% das vítimas de mortes violentas intencionais — categoria que soma homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. Enquanto as estatísticas de vítimas brancas caíram 31% no mesmo período, as de negros subiram 5,8% em relação a 2020.

— É um número inaceitável de homicídios de jovens, pobres e negros —afirmou Almeida, acrescentando que também pedirá o apoio da Justiça para implementar um plano nacional de proteção aos defensores de direitos humanos, sobretudo do meio ambiente, ameaçados. Em junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados na floresta do Vale do Javari, reserva natural do Amazonas, crime atribuído a criminosos ambientais da região.

Pai goleiro do corinthians

Com 46 anos, Silvio Almeida é um dos mais respeitados intelectuais do país. Em 2018, lançou o livro “Racismo Estrutural”, com dados estatísticos que comprovam que o racismo está nas estranhas das estruturas sociais, políticas e econômicas brasileiras. Formado em Direito e Filosofia, é mestre em Direito Político e Econômico e doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito. Atualmente, era professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultor da Federação Quilombola do Estado de São Paulo. Foi ainda professor convidado da Universidade de Duke, nos EUA.

Mas o que muita gente não sabe é que sua história guarda raízes com o futebol, uma paixão nacional. Em 2020, em entrevista ao Troca de Passe, do SporTV, Silvio Almeida, filho do goleiro Barbosinha, que foi do Corinthians nos anos 1960, contou como o esporte teve papel fundamental na sua formação pessoal e política. “O futebol é uma coisa contraditória e complexa. No futebol, você tem forças e energias fundamentais para a luta antirracista. Se não fosse o futebol, eu não estaria aqui. Eu sou um professor de Direito, mas o futebol permitiu que meu pai construísse algo para me dar possibilidades de estudar”, disse ele, filho de Verônica e Lourival de Almeida Filho, o Barbosinha, lembrando, porém, o tanto de racismo que o futebol também carrega. “O futebol é atravessado pelo que tem de pior na sociedade, como o racismo”.

Na posse de Silvio Almeida, assim como aconteceu na de outros ministros, a cerimonialista usou linguagem neutra, uma forma de falar que não faz distinção de gênero, como “todes” em vez de “todas ou todos”. Em parte de sua apresentação, Almeida direcionou suas críticas à gestão passada que classificou de “cruel” eques e notabilizou, segundo ele, por reproduzir “mentiras e preconceitos”:

— Recebo hoje um ministério arrasado, conselhos de participação foram reduzidos ou encerrados, muitas vozes da sociedade foram caladas, políticas foram descontinuadas e o orçamento voltado para os direitos humanos foi drasticamente reduzido. Como crueldade derradeira, a gestão que se encerra tentou extinguir sem sucesso a comissão de mortos e desaparecidos. Não conseguiu. Nesse sentido, eu quero que todos saibam, queto do ato ilegal baseado no ódio enopre conceitos erá revisto por mime pelo presidente Lula, que sempre teve um compromisso coma democracia.

Almeida disse que maior compromisso seu será “lutar para que o Estado brasileiro deixe de violentar seus cidadãos”. Ele também prometeu apresentar, nos próximos meses, um conjunto de políticas públicas à sociedade:

— Isso significa, dentre outras coisas, lutar contra o assassinato de jovens, pobres e negros, lutar contra um direito administrativo que rouba camelôs, que expulsa crianças da escola, fecha postos de saúde, recolhe pertences de pessoas em situação de rua e permite agressão contra todos os excluídos e marginalizados da sociedade.

Fim de uma era

Participaram da posse os ministros Luciana Santos (Ciência, Tecnologia e Inovação), Sônia Guajajara (Povos Indígenas), Anielle Franco (Igualdade Racial), Marina Silva (Meio Ambiente) e Vinicius Carvalho (Controladoria-Geral da União). A ex-ministra e agora deputada federal Maria do Rosário (PT) também falou na abertura do evento, destacando que o governo passado fomentou o ódio. Durante sua fala, os convidados gritaram “sem anistia”, mesmo bordão entoado na posse de Lula.

O ministro pontuou ser o fim da era em que a pasta era usada para atacar os direitos humanos.

— Encerra-se também nesse momento a era de um presidente que se disse orgulhoso em defender tortura e usou seu cargo amparado por sua ministra de Direitos Humanos — disse ele, que manterá a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, extinta durante a gestão Bolsonaro.