Valor Econômico, v. 20, n. 4876, 08/11/2019. Legislação & Tributos, p. E2

A Constituição e o artigo 19 do Marco Civil
Gustavo Binenbojm


No dia 5 de novembro próximo passado, o Valor Econômico publicou, nesta coluna, artigo da professora Ana Paula de Barcellos defendendo a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet - MCI (Lei n° 12.965, de 2014). A matéria será julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 4 de dezembro (RG 987), daí o interesse geral na questão.

A norma estabelece que o provedor de aplicações de internet (como Facebook, Twitter e YouTube) somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Embora o texto legal procure justificativa no intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura de conteúdos publicados por terceiros a partir de juízos discricionários dos provedores, seu âmbito de aplicação é muito mais amplo. Cria-se, na verdade, uma dilatada hipótese de reserva de jurisdição, acoplada a uma injustificável imunidade dos provedores de aplicações, que alcança outras situações além da proteção da liberdade de expressão dos usuários da internet.

Em diversos países, adota-se o mecanismo de notificação e retirada de conteúdos infratores (notice and take down) como marco para a responsabilização das plataformas, em casos de ofensas criminais, violação de direitos de crianças, à intimidade e à propriedade intelectual. Aliás, o Marco Civil adotou essa regra, em caráter excepcional, em casos de pornografia (artigo 21) e direitos autorais (artigo 31), permitindo a responsabilização civil do intermediário após a notificação da vítima, caso aquele deixe de promover, de maneira diligente, a indisponibilização do conteúdo ilegal.

Ora, dado o elastério do artigo 19 do Marco Civil da Internet, deixaram-se ao desabrigo da proteção legislativa outros direitos constitucionalmente consagrados, como direitos à honra e à imagem, o direito à informação correta (violado com a divulgação de fake news), e até situações mais graves, como a incitação ao ódio, à violência, ao terrorismo e ao racismo, que violam o direito à dignidade humana. Portanto, pela letra do artigo 19, mesmo alertados pela vítima da violação chapada a seus direitos, os provedores não poderão ser responsabilizados. É muito confortável poder aguardar por uma decisão judicial, imune a qualquer consequência legal, enquanto se lucra milhões com a veiculação de publicidade em conteúdos infratores da lei e da Constituição.

A exigência de prévia decisão judicial e a não responsabilização do provedor consciente e notificado da infração constitui violação a diversos direitos e garantias fundamentais contemplados na Constituição da República. Trata-se de um esvaziamento legal dos possíveis instrumentos de tutela de direitos individuais, enquanto a sua natureza jusfundamental declarada pela Constituição exige do legislador a adoção de meios eficazes para assegurá-los. Disso resulta uma esfera de proteção manietada, decorrente dessa espécie de imunidade sui generis conferida aos intermediários enquanto não houver pronunciamento judicial - verdadeiro incentivo velado à violação de direito alheio.

Quem é notificado da violação de direitos de terceiro e não adota providências no sentido de fazer cessar a violação, o faz por sua conta e risco, inclusive de responsabilização civil e penal. A decisão judicial que reconheça a violação e condene o infrator ao ressarcimento deverá contemplar esse comportamento do provedor pelo menos desde a notificação, sob pena de violação à regra da indenização integral do dano, prevista no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição. Levar a Constituição a sério importa reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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