O Estado de São Paulo, n. 46799, 04/12/2021. Internacional p.A20

 

Solução para evitar variante era óbvia

 

Fareed Zakaria

Autoridades de saúde alertaram que só vacinação ampla reduziria risco de mutação do vírus

O mais triste em relação ao surgimento da variante Ômicron é sua absoluta imprevisibilidade. Há meses, ou há mais tempo até, autoridades públicas de saúde têm alertado que, enquanto o coronavírus conseguisse circular livremente e amplamente, ele poderia mudar de forma, e essas mutações poderiam ser mais difíceis de lidar do que a variante original. Em outubro, o ex-premiê britânico Gordon Brown previu essa situação. Ele afirmou: “Nós, no Ocidente, podemos estar nos sentindo seguros e abençoados neste momento, porque nos vacinamos, mas poderemos dar de encontro com uma nova variante que venha da África ou da Ásia, onde as pessoas não foram vacinadas e não estão protegidas. E obviamente ela não será suscetível às vacinas que possuímos neste momento.”

A solução também era absolutamente óbvia: vacinar o restante do mundo – e rapidamente. Mas isso não aconteceu, e as disparidades resultantes são estarrecedoras. Perto de 70% da União Europeia e cerca de 60% dos Estados Unidos foram completamente vacinados e, ainda assim, apenas 8% das pessoas dos países mais pobres do mundo receberam a primeira dose. Anteriormente este ano, o fracasso poderia ser atribuído a um problema de produção e demanda. Mas o planeta está produzindo agora 1,5 bilhão de doses mensalmente. O problema tem sido de distribuição – ou, para dizer francamente, o mundo rico está estocando vacinas em detrimento dos pobres. Até o fim de setembro, os países mais ricos do mundo – EUA, União Europeia, Reino Unido, Canadá e China – possuíam um excedente estimado em aproximadamente 670 milhões de doses de vacinas, segundo a firma de dados de saúde Airfinity. E isso após garantir a vacinação total de todos os cidadãos com mais de 12 anos, incluindo a dose de reforço.

Estima-se que 100 milhões de doses armazenadas em países ocidentais expirarão e terão de ser jogadas no lixo se não forem aplicadas até o fim do ano – e, ainda assim, os imunizantes permanecem estocados, enquanto 1,6 bilhão de pessoas pobres do mundo receberam apenas 5% das vacinas.

 

DISTRIBUIÇÃO. Isso não resulta do fracasso de instituições globais. Existe um mecanismo efetivo de compartilhar e distribuir vacinas globalmente, o Covax, que foi estabelecido por um grupo de organizações internacionais de saúde. Mas os países ricos têm sido mesquinhos em relação às doações. Os EUA fizeram a maior promessa, de doar 1,2 bilhão de doses, mas até agora enviaram somente cerca de 280 milhões. União Europeia, Islândia e Noruega prometeram coletivamente em torno de 500 milhões de doses e enviaram cerca de 112 milhões. A China recentemente elevou sua promessa de 100 milhões para 850 milhões de doses, mas enviou cerca de 89 milhões. Como resultado, 82 países correm o risco de ficar aquém da meta da Organização Mundial da Saúde de que 40% da população de cada país esteja vacinada até o fim do ano, o que significa que o vírus continuará se replicando e sofrendo mutações livremente entre bilhões de pessoas. Qual a chance de não vermos uma nova variante em 2022?

Vacinar o mundo seria bom para a economia do mundo – principalmente para os países ricos que a dominam. Em maio, o FMI publicou uma proposta calculando que vacinar todos os habitantes do planeta em 2022 custaria US$ 50 bilhões. Mas o fracasso em fazêlo custaria US$ 9 trilhões até 2025. Colocado de outra maneira, um investimento de 0,06% do PIB global poderia ter um retorno 180 vezes maior.

Covid-19 e saúde pública não são as únicas áreas em que percebemos um nacionalismo autodestrutivo em prática. O assunto mais quente da economia esses dias é a inflação e suas causas. O pacote de ajuda do governo Biden para recuperação da pandemia é com frequência culpado por desencadeá-la, e certamente colaborou para a situação de alguma maneira. Mas, surpreendentemente, vemos inflação em alta por quase todo lado, incluindo em países que não gastaram livremente após serem atingidos pela pandemia. Então, o que poderia explicar a inflação global? Políticas protecionistas, como a guerra comercial de Donald Trump com a China e a campanha Buy American (compre produtos americanos) de Biden.

O ex-secretário do Tesouro Lawrence Summers escreveu recentemente que “reduzir tarifas é a política do lado da oferta mais importante que o governo poderia aplicar para combater a inflação”.

 

PROTECIONISMO. A conexão entre protecionismo crescente e inflação é óbvia. Ao longo das três últimas décadas, países têm consumido agressivamente mercadorias produzidas em todo o mundo porque elas são mais baratas. Quando o comércio se volta para dentro, encontrando fornecedores domesticamente e aplicando versões das provisões do “Buy American” de Biden, paga-se mais pelas mesmas mercadorias. Acrescente a isso perturbações na cadeia de fornecimento e súbitos aumentos de demanda que você verá a inflação aumentar por todo lado. Na semana passada, o governo Biden dobrou o valor das tarifas sobre a madeira canadense.

Até agora, a retórica do nacionalismo tem sido sovina. Mas à medida que os países transformam essa retórica em políticas, os custos vão aumentando. Isso é sentido nos países mais pobres do mundo e prejudicará principalmente as classes trabalhadoras dos países ricos. A resposta é uma maior cooperação global – em saúde pública, comércio e além. Mas algum líder nacional ousará dizer isso?