Valor Econômico, v. 20, n. 4881, 16/11/2019. Brasil, p. A2

Como a mudança do crédito vai afetar a potência do juro?

Alex Ribeiro


O Banco Central abriu o debate sobre como as transformações no mercado de crédito, com a redução de direcionamentos e mais liberdade, vão afetar a transmissão da política monetária para a inflação. Nesse assunto, há mais dúvidas do que certezas. Os estudos de economistas do BC chegam a conclusões diferentes, e os dados do estágio atual do ciclo de crédito são insuficientes para conclusões definitivas.

A discussão tem implicações práticas. A inflação segue baixa e, em tese, justifica cortar o juro abaixo de 4% ao ano. Mas o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC prega cautela a partir de fevereiro, pois não se sabe como os juros na mínima histórica vão afetar a economia e os preços. Alguns membros do colegiado citam um complicador a mais: “As mudanças no mercado de crédito e na intermediação financeira, como o maior papel desempenhado pelo crédito com recursos livres e pelo mercado de capitais, podem impactar a transmissão da política monetária”.

O tema foi citado pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, um integrante naturalmente com grande peso no colegiado. Para ele, a retomada dos cortes de juros pelo Copom em julho já chegou à economia. “O crédito já vinha crescendo, mas depois desse último movimento de corte de juros acelerou-se bastante”, disse, na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara.

A cautela do BC seria justificada porque, suspeita-se, a ampliação do crédito livre poderá levar a um aumento da potência da política monetária. O crédito direcionado tem juros limitados pelo governo, por isso seria mais insensível a mudanças na taxa básica, ao contrário do crédito livre.

Embora essa tese tenha sido muito repetida desde o governo Michel Temer, que começou a desmontar o sistema de crédito do BNDES, ela ainda não foi comprovada de forma robusta. Na própria página de trabalhos para discussão do BC é possível encontrar pesquisas com conclusões conflitantes.

Em 2016, os economistas Marco Bonomo e Bruno Martins constataram em uma pesquisa que uma alta de 1 ponto percentual na taxa Selic provoca uma queda de 1,2 ponto percentual no emprego em empresas que tomam crédito livre, mas de apenas 0,7 ponto em empresas que tomam crédito direcionado.

Num trabalho de setembro, o economista Pedro Henrique da Silva Castro chegou a uma conclusão diferente, em sua tese de doutorado na PUC-Rio, que recebeu comentários de especialistas como Márcio Garcia, Tiago Berriel, Eduardo Zilberman e Carlos Viana de Carvalho, além de Bonomo. Ele diz que, apesar de serem poucos os estudos sobre o tema, estabeleceu-se um consenso de que o crédito direcionado tira potência da política monetária. Seu argumento central é que a análise microeconômica do efeito do crédito direcionado em empresas ignora impactos macroeconômicos mais amplos, os quais devem ser observados nos chamados modelos de equilíbrio geral.

Uma ressalva importante: a questão em jogo não é se o governo deve ou não cortar o crédito direcionado. No caso do BNDES, por exemplo, há custos fiscais importantes que devem ser pesados, ante os benefícios. O ponto é como, exatamente, a mudança do mercado de crédito afeta a transmissão dos juros.

Além da controvérsia teórica, os dados põem em xeque a tese de que já houve uma mudança estrutural no mercado de crédito. Sim, é fato que os empréstimos direcionados estão recuando, e aqueles com recursos livres, subindo. Mas a fotografia atual do crédito livre, que deveria transmitir com mais potência a política monetária, é a mesma de antes da recessão. No começo de 2014, o crédito livre equivalia a 27,4% do Produto Interno Bruto (PIB) e, hoje, a 26,9% do PIB. Os empréstimos direcionados recuaram, de 22,8% para 20,7% do PIB, mas isso significa apenas que a parte menos sensível ao juro ficou ainda menor.

O aumento mais expressivo foi no volume de títulos emitidos por empresas no mercado de capitais, que passou de 6,6% do PIB para 10,5% do PIB desde a recessão. Nos últimos 12 meses, a alta foi de dois pontos percentuais do PIB. Mas o Relatório de Estabilidade Financeira mostra que 41,5% das novas emissões feitas nos 12 meses até junho representaram a troca de fonte de financiamento. Empresas substituindo fontes como operações com o BNDES e captações externas, que já tinham juros mais baixos.

Importa, ainda, a velocidade da expansão do crédito. Campos Neto acendeu uma luz amarela ao dizer que, desde que o BC voltou a cortar os juros, o ritmo de concessão se acelerou. Os dados mostram, porém, um quadro mais ambíguo. No caso do crédito livre não rotativo a pessoas físicas, a taxa de crescimento em 12 meses passou de 23,8% em junho (mês imediatamente anterior à queda de juros) para 27,2% em setembro. Houve recuo no crédito livre não rotativo a empresas, de 18,5% para 17,1%. Já a expansão do estoque de captações no mercado de capitais se desacelerou, de 32,5% a 29,1%.

O fato de o crédito não ter disparado não significa, necessariamente, que não vá reagir. Um box do Relatório de Inflação do BC de março de 2018 mostra que, nos cinco ciclos de distensão monetária anteriores, levou entre seis e oito meses para as concessões de crédito ganharem impulso. Será preciso esperar mais um pouco, portanto, para tirar conclusões definitivas sobre como a mudanças no mercado de crédito afetam o ciclo atual de política monetária.

Alex Ribeiro é repórter especial e escreve quinzenalmente

E-mail: alex.ribeiro@valor.com.br