O Globo, n. 32624, 02/12/2022. Economia, p. 13

Espaço de R$96 bilhões

Cássia Almeida
Fernanda Trisotto


A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem afirmado que, ao manter os gastos públicos federais em 19% do Produto Interno Bruto (PIB) não haverá expansão fiscal, o que permitiria despesas adicionais entre R$ 136 bilhões e R$ 150 bilhões. Relatório do Itaú, obtido com exclusividade pelo GLOBO, mostra que esse espaço é bem menor. Limita-se a R$ 96 bilhões.

O motivo da diferença entre as cifras está nas previsões para o desempenho do PIB e da inflação em 2023. A despesa este ano deve fechar em 18,4% do PIB. Para não ter impacto fiscal, nas contas do banco, a folga seria de R$ 96 bilhões, correspondente a 0,9% do PIB.

— É pouco, mas com esse valor dá para cumprir as principais promessas de campanha, como o Bolsa Família de R$ 600, o adicional de R$ 150 por cada criança, aumento real do salário mínimo, e recompor o Orçamento em alguns pontos, como a Farmácia Popular. Se não tivéssemos um problema fiscal, um país endividado, com a dívida pública subindo quatro pontos percentuais em relação ao PIB, seria possível gastar mais — explica Pedro Schneider, economista do banco, autor do relatório intitulado “Haverá expansão fiscal em 2023?”

Segundo o banco, esses valores acima de R$ 100 bilhões levam em conta um crescimento do PIB de 2,5% em 2023, enquanto as projeções do mercado estão em 0,7%, e com uma inflação maior. A diferença está em considerar que a inflação geral da economia, medida pelo deflator implícito do PIB, será três pontos percentuais maior que a inflação ao consumidor.

A média histórica é a metade disso. Quanto maior a inflação, maior o PIB em reais.

— Três pontos de diferença poucas vezes aconteceram na História. E o movimento de preços vai ter uma composição diferente no ano que vem. Teremos mais inflação de serviços, é natural que a diferença (entre a inflação geral e a do consumidor) diminua. Nos últimos anos, a subida foi maior em bens industriais — afirma Schneider.

Nos últimos anos, houve choque positivo das commodities, com alta nas cotações, o que fez aumentar a inflação e a arrecadação federal. Para 2023, há expectativa de queda nos preços, com a desaceleração da economia mundial e particularmente da China.

Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Ibre, da Fundação Getulio Vargas (FGV), diz que há um aumento de gasto, sim, mas ele considera que, com as previsões de receita “meio alopradas” que estavam circulando para 2023, “uma despesa de 19% do PIB seria encarada pelo mercado como algo bastante razoável, dadas as circunstâncias.”

Menos receitas extras

As receitas extraordinárias que turbinaram a arrecadação este ano, como a da privatização da Eletrobras e os dividendos recordes pagos pela Petrobras, não devem se repetir em 2023. Para Giambiagi, essa é a grande incógnita para o ano que vem:

— No caso do governo federal, é urgente sinalizar claramente o que vai acontecer com a receita de PIS e Cofins dos combustíveis, que teoricamente teria sido reduzida apenas por alguns meses em 2022, mas voltando em 2023. Pessoalmente, não vejo razão nenhuma para o futuro governo abrir mão dessa fonte tão importante de receita.

Schneider concorda. Para ele, essa isenção para gasolina não alivia a inflação dos mais pobres e, neste momento de urgência climática, não se deve “incentivar combustível fóssil.”

Um aumento de gasto de R$ 100 bilhões vai levar a dívida pública em relação ao PIB a subir de 74% para 78% de 2022 para 2023. Uma dívida bem mais cara do que em 2020, quando a Taxa Selic estava em 2% ao ano — atualmente, está em 13,75%.

Com isso, a despesa pública com juros cresceu significativamente. Representava 4,1% do PIB em 2020, subiu para 6,3% em 2022 e deve chegar a 7% no ano que vem.

— Se considerarmos o risco de voltarmos a ter déficit primário (receita menos despesa antes do pagamento de juros), estamos falando de um déficit nominal (incluindo despesa de juros) de 7% a 8% do PIB. É urgente que o futuro governo mostre como vai sair de um déficit de 8% do PIB para um déficit mais razoável em 2026 — diz Giambiagi.

Para o economista, o aumento do gasto não pode passar de 0,5% do PIB.

 

Na avaliação de Jeferson Bittencourt, economista da ASA Investments e ex-secretário do Tesouro Nacional, a discussão da expansão fiscal restrita à comparação do patamar do gasto em relação ao PIB desvia do problema principal do conjunto de medidas que está sendo proposto na “PEC da Transição”.

— Olhar um ano contra o outro é muito uma preocupação de curto prazo. A discussão fiscal de agora está mais centrada no fato de que estamos criando a terceira maior despesa primária do governo federal sem qualquer compensação de corte em outras despesas ou aumento de receita. Não é uma preocupação de um ano, é uma preocupação perene — argumenta Bittencourt.

O economista explica que o cenário do próximo ano não é base para uma despesa permanente, e que o problema é a falta de lastro na discussão fiscal:

— Há um descasamento que é muito preocupante. Contratamos toda a despesa antes de o mandato começar e não se fez nenhuma sinalização ainda de compensação, seja pelo lado da despesa, seja pelo lado da receita. Em quanto tempo se entende que a credibilidade da política fiscal vai resistir? Não é só até apresentar a proposta, mas sim até essa proposta começar a gerar resultado.

A professora Margarida Gutierrez, da Coppead/UFRJ, concorda:

— A questão não está no gasto primário para o ano que vem, é algo muito maior que isso. A variável relevante para medir o impulso fiscal (que aqueceria a economia) não é o gasto. É o resultado primário.

Despesas sociais no teto

Ao focar a discussão em um aspecto, Margarida Gutierrez argumenta que o novo governo deixa soltas as reais intenções de manutenção da âncora fiscal e controle dos gastos. Para ela, é fundamental que todas as despesas primárias, incluindo as sociais, fiquem dentro do teto de gastos, para impedir uma expansão desenfreada motivada por razões eleitoreiras:

— O país não comporta isso, por várias razões. Nossa relação dívida/PIB é muito grande, a dívida pública está muito cara, incidindo um juro real acima da inflação, e o governo terá déficits a partir do próximo ano.