Título: Transposição: uma análise de controvérsias
Autor: Theophilo Ottoni Filho
Fonte: Jornal do Brasil, 26/09/2005, Outras Opiniões, p. A12

O projeto do governo federal de transposição do Rio São Francisco para bacias hidrográficas da Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte não é a melhor solução para o problema da seca no Nordeste. O projeto, que deve custar R$ 2 bilhões, consiste na transferência de águas do rio para abastecer pequenos rios e açudes da região que possuem um déficit hídrico durante o período de estiagem.

Embora o desvio de 60 m³/s de água do fluxo do São Francisco para outras bacias traga pouco impacto negativo para a ecologia ou economia da bacia do São Francisco, já que a vazão fluvial média do rio supera 2.000 m³/s e o desvio representa apenas 3% desse total, a deterioração desses cursos dágua foram causados pela ação dos ocupantes de suas bacias. São estes moradores, e não a totalidade da população brasileira, que devem arcar com os custos dos impactos, conforme prevê, inclusive, a legislação brasileira.

O principal argumento usado por aqueles que defendem a transposição é que as bacias nordestinas não pertencentes ao Vale do São Francisco são carentes de água e que, por isso, como salvadora opção de engenharia hídrica, todos os estados deveriam concordar com a transposição. A falha desse argumento está na premissa de que não existe, no Nordeste, outras fontes de água significativas e confiáveis, senão o Rio São Francisco. Esse é um mito que foi criado e que precisa ser abolido. Na verdade, o mais volumoso manancial dos continentes (excluindo-se as geleiras) são as águas subterrâneas. Estima-se que no Planeta tal reserva exceda o volume dos rios na ordem de milhares de vezes.

Portanto, considerando a extensão continental do Polígono das Secas (1 milhão de km²), existe mais fluxo de água subterrânea desperdiçado no mar do Nordeste do que a soma de todos os fluxos dos rios nordestinos, incluindo o São Francisco. Além de ser mais volumosa, a disponibilidade hídrica subterrânea, em geral, é mais regular e confiável do que a dos mananciais de superfície. Esse é o principal motivo pelo qual as áreas áridas e semi-áridas, como o Oeste dos Estados Unidos, Austrália e Israel, baseiam sua política hídrica na utilização das águas de poços.

Sem dúvida, os nordestinos não precisam da transposição do Rio São Francisco. O Nordeste precisa combater os desperdícios hídricos, reutilizar os esgotos sanitários (em Israel, 70% das águas servidas são reusadas), investir em prospecção e exploração dos aqüíferos subterrâneos, utilizar melhor os mananciais de superfície e explorar mais amplamente as captações de chuva (pela utilização de cisternas e reservatórios protegidos). Os recursos financeiros utilizados na transposição deveriam ser direcionados para todos os estados nordestinos, visando à consolidação de uma política hídrica sustentada regional, mais democrática, abrangendo uma população maior, independente do Velho Chico.

Theophilo Ottoni Filho é professor do Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).