Título: Acidente com efeito retardado
Autor: Gustavo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 26/09/2005, Rio, p. A13

Até os oito anos de idade, Lidiane Rodrigues Santos da Silva era uma criança saudável, que vivia no Vale das Mangueiras, bairro pobre da periferia de Belford Roxo. Estudiosa, costumava encantar os pais - um motorista de ônibus e uma dona-de-casa - com desenhos da natureza, apesar de seu bairro não estar entre os mais arborizados. Entre seus desenhos, sua própria casa, as árvores, o sol e o céu - sempre azul. No dia 14 de julho de 2001, o céu mudou de cor para Lidiane - e toda sua vida mudaria. A partir daí, sua mãe Lígia viveria uma rotina de nebulizadores, remédios e correrias ao pronto-socorro, uma rotina que se arrastou até outubro de 2003, quando terminou de forma trágica, no Hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá. O céu, para Lidiane, não podia esperar.

Lígia e o marido passaram os dois últimos anos perguntando 'por quê'.

Uma possível resposta apareceu e está em um documento de 120 páginas em poder da 31ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, obtido com exclusividade pelo Jornal do Brasil. No laudo desenvolvido pelo perito judicial Moysés Alberto M. a resposta é trágica: por causa do vazamento do pó catalizador em 14 de julho de 2001 sobre vários bairros de Belford Roxo e Duque de Caxias, Lidiane pode ter feito parte de um contingente de contaminados cujo número é desconhecido. A Petrobras, empresa responsável pelo acidente, na época não detectou os efeitos maléficos à saúde da população, mas o laudo contesta a versão oficial. Assim como Lidiane, que aos nove anos talvez tenha ingerido quantidades de níquel, vanádio e cromo capazes de comprometer seu sistema respiratório, uma quantidade indeterminada de moradores de Belford Roxo e oito bairros de Duque de Caxias também corre risco.

Na época do acidente, a Petrobras contratou uma empresa terceirizada para o atendimento à população atingida.

O laudo, ainda inédito, contesta a versão oficial da Petrobras para o incidente, como no trecho abaixo:

''Embora o fabricante do catalisador tenha fornecido a composição do mesmo virgem, não foi este o produto lançado na atmosfera na ocasião do acidente na Reduc. Todas as partículas do catalisador de equilíbrio em referência eram passíveis de ingestão. Cento e quarenta toneladas do supracitado material escaparam para a atmosfera, por três horas e meia, sem interrupção, antes da etapa regenerativa, porquanto (sic) tal produto estava contaminado com metais pesados, hidrocarbonetos e coque. Nas pessoas atingidas, a interação ocorrida entre o material particulado e o suco gástrico proporcionou a disponibilidade dos íons dos metais pesados para absorção pelos órgãos, devidamente transportados pela circulação sanguínea''.

Ouvido pelo JB, o perito confirmou que os exames rastrearam a presença de quantidades significativas de níquel, cromo, vanádio, chumbo, cádmio, dentre outros metais pesados, no catalisador jogado no ar.

Na memória de Lígia de Fátima Rodrigues dos Santos, mãe de Lidiane, além da filha, os dias que se seguiram ao acidente de 2001:

- Ela ficou brincando no meio do pó. Depois daquilo, ela sempre pareceu mais debilitada - diz Lígia, que hoje vive de memória, já que sua história e de sua filha Lidiane ficou à margem da estatística. Apesar de religiosa, a mãe confessa que não freqüenta mais igrejas:

- Acredito muito em Deus. Ia à igreja com minha filha. Mas depois que ela se foi, parei.

Agora, para ela, valerá mais que a divina, a Justiça dos homens.