Valor Econômico, v. 20, n. 4882, 19/11/2019. Opinião, p. A11

Juro baixo

Márcio Garcia


A recente promulgação da reforma da Previdência, com razoável potência fiscal, representou marco significativo do esforço para fazer com que o governo caiba no PIB. Diversas outras iniciativas, algumas já em consideração no Congresso, se fazem necessárias, mas a perspectiva de descontrole fiscal parece ficar cada vez mais para trás.

Ao mesmo tempo, a taxa Selic encontra-se em vale histórico, com perspectivas de cair ainda mais. Tudo indica que chegaremos a uma taxa de juros real muito próxima de zero, com a inflação absolutamente sob controle, feito inédito em nossa história. Tal combinação de política fiscal sustentável com política monetária expansionista compõe o policy mix que há décadas vem sendo defendido por analistas. Só agora, a economia política tupiniquim, por vezes aliada a barbeiragens dos policy makers, permitiu que tal combinação de políticas ocorresse. Há, portanto, razões para otimismo, sobretudo se forem adiante outras iniciativas para elevar a produtividade da economia, como a reforma tributária e a liberalização comercial.

É bem verdade que há ameaças, como a deterioração do cenário externo, caso a guerra comercial entre China e EUA venha a escalar, ou eventos geopolíticos especialmente adversos venham a ocorrer. A própria contração fiscal reduz a demanda no curto prazo, trazendo efeitos análogos àqueles que a abstinência de drogas causa em pacientes em recuperação. Seja como for, trata-se de realidade nova para a economia brasileira. E, como navegar é preciso, vamos tentar mapear tais mares nunca dantes navegados pelo país.

São basicamente cinco os canais de transmissão da política monetária (vide, por exemplo, https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/transmissaopoliticamonetaria): decisões de consumo e investimento, crédito, taxa de câmbio, preços de ativos e expectativas. Vamos rever como cada um desses mecanismos poderá ajudar a impulsionar a retomada da economia ora em curso.

Juros reais baixos, como os atuais, desestimulam a poupança, isto é, aumentam o consumo, e também estimulam o investimento. O impacto deste canal depende, em boa medida, da arquitetura do sistema financeiro, em especial, ao canal do crédito.

A taxa Selic mais baixa tende a levar a taxas de empréstimos bancários também mais baixas. Tal efeito está demorando a acontecer na economia brasileira, com os spreads bancários ainda em níveis muito elevados. No entanto, as medidas pró-competição nos mercados financeiro e de capitais que vêm sendo promovidas no bojo da agenda BC# devem vir em breve a surtir efeitos mais claros, elevando o volume de crédito e reduzindo as taxas de empréstimos. Num cenário de retomada mais forte dos investimentos, e de maior demanda por crédito de longo prazo, o grande desafio será a provisão de financiamento de longo prazo com muito menor participação do crédito público do que no passado. A postura do BNDES de atuar em parceria com o setor privado parece ser a mais adequada para enfrentar tal desafio.

Já no canal do câmbio, a queda da Selic, ao desestimular o influxo de capitais para o Brasil, vem contribuindo para manter a atual taxa de câmbio relativamente elevada (depreciada). Dado o estado ainda anêmico da economia brasileira, com alta taxa de desemprego e elevado hiato do produto, a depreciação da moeda não deverá atrapalhar o BC em cumprir a meta para a inflação. O câmbio alto ajuda as exportações e contrai as importações, o que estimula a retomada. Depreciação da taxa de câmbio poderia ser um problema caso firmas e famílias estivessem fortemente endividadas em moeda estrangeira. Felizmente, este não é o caso. Na realidade, uma das forças que impulsionou o dólar para cima foi a troca efetuada por empresas de dívida em dólar por dívida em real, que se tornou mais vantajosa com a queda dos juros domésticos.

Os juros baixos também têm ajudado a elevar os preços dos ativos, como bem evidenciado pela alta da Bolsa. A exemplo do que já ocorre em São Paulo, mercados imobiliários em outras praças devem se aquecer, sobretudo se prosseguir a queda das taxas de hipotecas, na esteira da queda da Selic. A eventual retomada do setor imobiliário teria a grande impacto sobre a criação de empregos, constituindo elemento fundamental para que a retomada venha a se fortalecer e persistir.

Os juros baixos também podem ajudar a alongar os perfis muito encurtados dos aplicadores brasileiros. Como se sabe, há muito vige entre nós um “curtoprazismo” no que tange a aplicações financeiras, que se reflete na baixa oferta de fundos de longo prazo. A Selic sempre foi atraente por duas razões: seu nível era elevado e tendia a aumentar em épocas de crise econômica. Como tal realidade parece ter sido deixada para trás, é natural que haja alongamento das aplicações.

O último canal é o de expectativas. Com a credibilidade que o BC recobrou a partir de 2016, as expectativas de longo prazo para a inflação têm se mantido rigorosamente na meta. Os agentes econômicos entendem que a atual redução dos juros não coloca em risco o controle da inflação. É necessária uma taxa temporariamente mais baixa do que a taxa neutra para ajudar a fraca recuperação ora em curso. Quando a expansão da economia voltar a se acelerar, o BC voltará a subir os juros.

Em suma, em contraste com as economias desenvolvidas, nas quais o juro baixo já vinha ocorrendo há muito mais tempo, ter juro baixo com a inflação sob controle, sem a ameaça de descontrole fiscal, é grande novidade por aqui. O impacto desta nova realidade pode surpreender positivamente. Como sempre, o risco é a volta da complacência na condução da política econômica.

Márcio G. P. Garcia, Ph.D. por Stanford, professor titular do departamento de Economia da PUC-Rio, Cátedra Vinci Partners, escreve mensalmente neste espaço