Valor Econômico, v. 20, n. 4882, 19/11/2019. Especial, p. A12

Discurso político alimentou piora, diz ex-presidente do Ibama

Daniela Chiaretti 


“O discurso político que deslegitima a fiscalização ambiental é fator propulsor do aumento do desmatamento. ” A frase é de Suely Araújo, advogada e ex-presidente do Ibama na gestão de Michel Temer. “Desde o meio de 2018, com a campanha para as eleições presidenciais, foi assumido um discurso de ataque à fiscalização ambiental, ao Ibama, ao ICMBio e à legislação ambiental”, afirmou Suely ao Valor. “Depois da posse [em janeiro], infelizmente, esse discurso não cedeu. ”

A advogada que chefiou o Ibama entre junho de 2016 e janeiro de 2019 refere-se às críticas à “indústria da multa” – expressão cunhada pelo presidente Jair Bolsonaro na campanha –, à defesa de garimpeiros ou madeireiros em terras indígenas, ao questionamento técnico de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, e por aí vai. “Quando autoridades que estão em postos de comando no país” fazem esses questionamentos, diz Suely, “há na prática incentivo ao desmatamento e outros ilícitos ambientais. ” Ela segue: “Fica bastante complicado combater o desmatamento ilegal na Amazônia se não for revertido esse tipo de posicionamento”.

“Essa postura, vinda de líderes políticos importantes, estimula infrações ambientais em campo, desmotiva e deslegitima os servidores públicos além de colocar sua própria vida em risco”, diz.

Suely Araújo lembra as medidas drásticas que foram tomadas no passado quando o desmatamento registrou picos históricos. Em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, a derrubada foi de mais de 29 mil km2. Como resposta, o governo editou a medida provisória 1511/1996, que ampliou a exigência de reserva legal na Amazônia, passando de 50% para 80% da área da propriedade. O resultado, no ano seguinte, foi que o desmatamento caiu para 18 mil km2.

Outro pico do desmatamento foi em 2004, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, alcançando 27 mil km2. Na ocasião, adotou-se o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, conhecido por PPCDAm.

O plano tem três eixos - de monitoramento e fiscalização, de ordenamento fundiário e territorial e de fomento a atividades sustentáveis. “É reconhecido internacionalmente e tido como responsável pela queda em mais de 80% no desmatamento até 2012”, diz Suely. “Mas foi colocado na gaveta”, denuncia. “A Amazônia precisa do PPCDAm sendo implementado em todos os seus eixos”, defende.

Em 2008, novo pico, e o desmatamento chegou a 12.911 km2. Foram adotadas duas medidas para conter o estrago. Uma delas foi um decreto que mudou a legislação de crimes ambientais incorporando sanções mais graves, aumentando o valor das multas e colocando mais prerrogativas a embargos. A segunda medida foi adotada na esfera do Conselho Monetário Nacional. Vetou-se o crédito rural na Amazônia a quem não estivesse em ordem com as exigências do órgão ambiental. No ano seguinte o desmate caiu para 7.464 km 2.

“Quando ocorreram os picos de desmatamento sempre teve uma medida, um reforço à legislação, o maior rigor na política pública”, diz Suely Araújo. “Agora o que tem que ser cobrado são quais medidas de maior rigor o governo vai tomar”, diz.

Além de o PPCDAm estar parado, o governo extinguiu o Departamento de Florestas e de Combate ao Desmatamento e a Secretaria de Mudança do Clima e de Florestas, ao qual estava vinculado. O tal departamento buscava financiamentos para ações do governo, articulava pactos com o setor produtivo, orientava o Ibama e órgãos estaduais. “Foi uma grande perda na estrutura do MMA”, diz. “Ibama e ICMBio são autarquias operacionais que aplicam políticas públicas, mas quem as formula é o ministério, que, claramente, não vem cumprindo esse papel no controle do desmatamento. ”

Segundo ela, a atual Secretaria de Florestas e Desenvolvimento Sustentável do Ministério do Meio Ambiente (MMA) não tem titular definitivo e há vários cargos vagos até hoje. Algumas superintendências regionais do Ibama ainda estariam acéfalas, depois de quase um ano de governo Bolsonaro. “Essa situação parece evidenciar não a economia de recursos públicos, mas, sim, a não política pública”, escreveu Suely em nota ao Valor.

Ela concorda que faltam fiscais para controlar o desmatamento. “A fiscalização ambiental em um país da dimensão do Brasil é muito complexa”, reconhece. O Ibama, diz, chegou a ter uma equipe de 1.300 fiscais e atualmente tem 750 para todo o país. “Isso é muito pouco. Em 2019 pedimos um concurso emergencial de 800 pessoas, não só para fiscalização, também para licenciamento e outras áreas da autarquia”, conta. “Mas esta opção está totalmente descartada. ” Segundo ela, no quadro do Ibama há “servidores de valor”, experientes, que foram colocados de lado ou estão sendo subaproveitados.

Para ela, operações com presença em massa, como a da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que empregou as Forças Armadas para combater as queimadas na Amazônia, não resolvem o problema. “São caras e, no momento em que os homens saem, o ilícito retorna”, diz.

No planejamento para operações de fiscalização do Ibama feito a cada fim de ano, a previsão era para mais de 1.200 operações em campo. “Não digo que a fiscalização não tem atuado, operações têm acontecido. Mas há lacunas em ações estratégicas”, acredita.

Suely lembra que a GLO, segundo divulgado, custou R$ 1,5 milhão por dia. Em 60 dias, calcula, gastaram-se R$ 90 milhões. “O Ibama, para todas as 1.200 operações de fiscalização do ano, no Brasil todo, tinha previsto R$ 102 milhões”, compara. “Em 60 dias de GLO gastou-se todo o dinheiro do ano para toda a fiscalização no país, de flora, de garimpo, agrotóxicos, de fauna

Segundo a ex-presidente do Ibama, “a crítica em relação ao governo anterior, em termos de orçamento, é frágil”. Ela diz que não sobram recursos no Orçamento, mas o governo atual teria assumido com recursos previstos de R$ 102 milhões para a fiscalização ambiental. Em 2018, o valor previsto na mesma rubrica orçamentária era de R$ 91 milhões. “Não afirmo que está sobrando dinheiro, mas a afirmação de penúria é frágil”, diz ela.

Nas operações, além disso, ela diz que o órgão tem que ter um menu de diferentes tipos de ações. Uma delas, por exemplo, atua em paralelo com pactos firmados com o setor privado para que não trabalhem com desmatamento ilegal. “Rastreia-se as cadeias vendo onde há desmatamento ilegal, quem compra, quem financia, qual o volume”, exemplifica. “Às vezes se têm resultados superiores às das operações tradicionais.”

Suely cita ainda o apoio que vinha ao Ibama do ingresso de recursos financeiros via Fundo Amazônia. Em abril de 2018 ela assinou um contrato, de três anos de duração, no valor de R$ 140 milhões para locação dos helicópteros e das caminhonetes do Ibama que atuam em operações na Amazônia. “O governo atual recebeu um legado importante para a atuação da fiscalização”, registra.

Para Suely Araújo, a Amazônia precisa do PPCDAm a plena carga, do Ibama e do ICMBio “com autonomia para atuar tecnicamente”, de parceria com institutos de pesquisa, da ajuda da sociedade civil. “Precisa de governo”, diz.