O Estado de São Paulo, n. 46813, 18/12/2021. Notas & Informações p.A3
Anvisa dá exemplo de coragem
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso da vacina da Pfizer contra a covid-19 em crianças de 5 a 11 anos de idade. Foi o que bastou para que o presidente Jair Bolsonaro, inimigo declarado da vacinação para qualquer idade, partisse para a intimidação explícita dos responsáveis pela decisão da Anvisa.
Em transmissão pela internet, Bolsonaro, depois de admitir que não tem poder para interferir na agência, exigiu saber os nomes de quem participou do processo para, então, “divulgar os nomes dessas pessoas para que todo mundo tome conhecimento quem são essas pessoas e obviamente forme o seu juízo”.
Não é preciso ser especialista em bolsonarismo para deduzir que o objetivo de Bolsonaro, usando seu poder e sua visibilidade como presidente, é atiçar os cães das redes sociais a destruir a reputação profissional e arruinar a vida privada dos funcionários da Anvisa.
Tal comportamento, obviamente incompatível com o exercício da Presidência da República, é ademais a reiteração da confusão deliberada que Bolsonaro faz entre seus desejos pessoais e decisões de Estado.
Felizmente, a Anvisa não se deixou intimidar. Em atitude corajosa, num notável contraste com a pusilanimidade de Bolsonaro, a agência emitiu uma nota oficial em que, referindo-se explicitamente às declarações do presidente, informou que “repudia e repele com veemência qualquer ameaça, explícita ou velada, que venha constranger, intimidar ou comprometer o livre exercício das atividades regulatórias e o sustento de nossas vidas e famílias: o nosso trabalho, que é proteger a saúde do cidadão”.
A nota ainda revela que desde outubro os funcionários da Anvisa vêm sofrendo ameaças de morte “por parte de agentes antivacina” e que se tornaram “alvo de ativismo político violento” – estimulado, como todos sabem, pelo presidente da República em pessoa. É gravíssimo.
A decisão da Anvisa não é vinculante, ou seja, o governo pode decidir não segui-la. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, bolsonarista exemplar, já disse que, a despeito da avaliação da Anvisa, a vacinação de crianças “não é um assunto consensual”. Para Bolsonaro, contudo, era preciso intimidar a Anvisa, pois essa é e sempre será sua natureza e porque esse comportamento irresponsável lhe rende votos entre os que têm dificuldade em viver numa sociedade democrática.
Esse tenebroso episódio serve para reiterar a importância do arcabouço legal que garante a independência e autonomia das agências reguladoras. A Anvisa, em particular, é composta por cinco diretores com mandato fixo. Não podem, portanto, ser demitidos quando tomam decisões técnicas que desagradam ao governo de turno. A agência é, conforme diz a própria nota da Anvisa, um “órgão do Estado brasileiro”.
Criada por lei em 1999, a Anvisa tem por finalidade institucional “promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras”. Aprovar o uso de imunizantes que ajudem a conter os efeitos de uma pandemia que já dura quase dois anos faz parte dessas atribuições, assim como recomendar às autoridades que cobrem certificado de vacinação de estrangeiros para evitar que o País se transforme no paraíso internacional dos negacionistas.
Há três anos, a sociedade assiste aos surtos diários do presidente, que faz de tudo, menos governar em nome do melhor interesse do País. Bolsonaro se empenha com denodo em submeter as instituições de Estado a seus propósitos particulares, sendo bem-sucedido em muitos casos, como mostram episódios recentes na Polícia Federal, no Ibama e no Iphan. O ataque explícito à Anvisa e a seus funcionários certamente não será o último, pois Bolsonaro já deixou claro que não aceita os limites constitucionais de seu poder. Que as demais instituições demonstrem a bravura da Anvisa e, como ela, recordem a Bolsonaro que ele não pode tudo.