O Globo, n. 32627, 05/12/2022. Mundo, p. 23
Fora das sanções
João Paulo Saconi
Deflagrada há nove meses e recebida com sanções econômicas em série da Europa e dos EUA, a guerra da Rússia contra a Ucrânia não se tornou um obstáculo aos planos do país de Vladimir Putin de continuar se expandindo internacionalmente no setor de energia nuclear. Hoje, segundo a Rosatom, estatal russa dedicada a essa matriz energética, o país está diretamente envolvido na construção de 34 usinas em 11 nações diferentes, incluindo o Brasil. Em meio à guerra, deu início a novas empreitadas no Egito e na Hungria.
O movimento em relação à energia nuclear é atípico se observados outros ativos econômicos da Rússia que perderam espaço nos países ocidentais por causa da invasão da Ucrânia, como foi o caso do petróleo. Kirill Komarov, o diretor de desenvolvimento e negócios internacionais da Rosatom, avalia que os riscos envolvidos na produção de energia nuclear fazem com que as sanções não abarquem o setor — o que ele espera que continue acontecendo.
— Formalmente, a Rosatom não está sob qualquer sanção. E, em todas as medidas da Europa e dos Estados Unidos contra a Rússia, está especificado que não há sanções contra a energia nuclear. Não apoiamos o regime de sanções, não achamos que seja correto adotá-las. Mas, em todo caso, achamos que a energia nuclear não deve ter nada a ver com a política, porque a chave do setor é a segurança— afirmou Komarov ao GLOBO.
Breve contra punições
Ele destacou a duração dos projetos como outro fator que evita as sanções:
— Uma parceria entre países para a construção de uma usina pode envolver até cem anos de trabalho, da construção ao fim da vida útil. Logo, aquilo que está acontecendo pontualmente num momento não deveria impactar — disse, em referência ao conflito.
Ainda segundo Komarov, a energia nuclear russa não só manteve trajetória alheia às sanções como conta com tecnologias de países europeus e seus aliados. É o caso da França, de onde saem as turbinas para as instalações nucleares russas, e da Coreia do Sul, responsável por sistemas que levam água aos reatores.
Entre os sinais de que a Rússia se mantém globalmente ativa nesse mercado, Komarov menciona a participação de uma delegação da estatal na COP27, no início do mês, para debater energia nuclear. E ainda a adesão de representantes de 65 países a um fórum global que a companhia promoveu há duas semanas no balneário russo de Sóchi, no Mar Negro.
No evento, um dos projetos que causaram interesse foi a central nuclear de el-Dabaa, 300 km a noroeste do Cairo. O projeto, inédito no Egito, foi iniciado em junho, já enquanto o governo egípcio trabalhava para se equilibrar entre as parcerias com Moscou e com potências do Ocidente — em março, no primeiro mês da guerra, embaixadores do G7 cobraram posição mais dura do Egito ante a Rússia.
No evento, um dos projetos que causaram interesse foi a central nuclear de el-Dabaa, 300 km a noroeste do Cairo. O projeto, inédito no Egito, foi iniciado em junho, já enquanto o governo egípcio trabalhava para se equilibrar entre as parcerias com Moscou e com potências do Ocidente — em março, no primeiro mês da guerra, embaixadores do G7 cobraram posição mais dura do Egito ante a Rússia.
A decisão de manter o início das obras em el-Dabba garantiu ao Egito, nos últimos cinco meses, a criação de 5 mil novos postos de trabalho, segundo dados da Rosatom. A projeção é que o total de empregados se torne cinco vezes maior, chegando a 25 mil: em ritmo acelerado, a segunda das quatro partes da estrutura começou a ser construída em 19 de novembro. A previsão é de que, além da energia produzida, o Egito tenha uma redução na emissão de CO2 de 12 milhões de toneladas— apesar dos outros riscos ambientais inerentes a esse tipo de usina.
Na Hungria de Viktor Orbán, o dirigente mais próximo de Putin na União Europeia, a Rosatom firmou em agosto um acordo para a ampliação da usina de Paks a única do país, com a criação da Paks II. O projeto está em curso desde então e foi defendido em Sóchi há uma semana pelo ministro húngaro de Negócios Estrangeiros, Peter Szijjarto, como uma alternativa para a deficiência do próprio país na produção de petróleo e gás.
— Espero sinceramente que nenhum país europeu impeça esse investimento — afirmou Szijjarto, completando: — E, se alguém tentar impedir, consideraremo sesse movimento um ataque à nossa soberania energética.
Planos para o Brasil
No caso do Brasil, que não aderiu às sanções contra a Rússia em outros segmentos econômicos, a cooperação com os russos para a energia nuclear também avança — a despeito de eventuais pressões dos EUA e da Europa para que o país tenha posição mais dura ante Putin e sua guerra na Ucrânia.
Depois de ter celebrado em 2021 um acordo de compartilhamento de tecnologias com a Eletronuclear, que abriu espaço para contribuições da Rosatom na conclusão de Angra 3, Komarov assinou um novo termo semelhante em novembro coma ENBPar, estatal que o governo de Jair Bolsonaro criou para englobar o programa nuclear brasileiro. Recentemente, ficou acertada também a participação dos russos no fornecimento de urânio enriquecido para Angra 1 e 2 até 2027, segundo ele.
Os termos possibilitam que os russos demonstrem abertamente quais são os planos para o futuro da cooperação:
— Com certeza o Brasil quer terminar de construir a usina de Angra 3, que nunca foi acabada. Mas também é muito importante construir novas. E a Rússia está disposta a participar ativamente nesses projetos —disse Komarov.
"Uma parceria para a construção de uma usina pode envolver até cem anos de trabalho, da construção ao fim da vida útil. Logo, aquilo que acontece pontualmente não deveria impactar" - Kirill Komarov, diretor de negócios internacionais da Rosatom