Título: ¿Expandir sem critério é mais rápido¿
Autor: Rodrigo Vasconcelos
Fonte: Jornal do Brasil, 26/09/2005, Brasília, p. D3

Arquiteta e urbanista formada pela Universidade de Brasília, Tânia Battella trabalha desde a década de 1970 com planejamento urbanístico. Ajudou a escrever o capítulo de política urbana e meio ambiente na elaboração da Lei Orgânica do Distrito Federal. No Executivo local, passou pelo antigo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Secretaria de Viação e Obras do GDF, que deu origem à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitacional (Seduh), hoje sob a condução da secretária Diana Meirelles. No início da década de 1980, foi secretária-executiva do então Conselho de Arquitetura Urbanismo, atual Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do DF (Conplan). E coordenou também, no governo Sarney, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano do Ministério do Interior. "Desde aquela época, o governo não dá atenção ao planejamento urbanístico. No Conselho, éramos só dois. Brincávamos que quando um de nós participava de uma reunião com a sociedade civil, metade do Conselho estava representado", relembrou. Tãnia ainda trabalha na Câmara Legislativa e integra o Conselho Administrativo da Terracap como representante do governo federal. É a partir dessa experiência e com esse currículo, que Tânia Battella fala sobre os problemas no processo de revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF (PDOT). Sobre ele tem uma posição firmada. Está sendo conduzida de forma apressada, por uma razão específica. É que, afirma, expandir sem critério é mais rápido . - O planejamento urbano do DF é tema permanente de discussão desde a fundação de Brasília e, mesmo assim, desvios e conflitos são recorrentes. Onde houve falhas?

- Não adianta planejar sem contar com órgãos fiscalizadores eficientes. Sem eles, o melhor planejamento fica na gaveta. A Constituição de 1988 facilitou a fiscalização quando obrigou a elaboração de planos diretores urbanos. O Estatuto da Cidade aperfeiçoou a legislação, ao introduzir excelentes instrumentos de gestão democrática das cidades. Mas nada disso vale se não houver participação popular. E no Distrito Federal, o povo foi afastado do processo.

- Afastado, como?

- Para cada região administrativa, deveria haver um conselho local onde os problemas urbanos seriam discutidos pelas comunidades diretamente interessadas. Seria uma maneira até didática de familiarizar os moradores com os conceitos de planejamento urbano e de cada um saber o que está acontecendo. O morador só consegue defender seus interesses se sabe o que está acontecendo na comunidade. E os conselhos tiveram participação ativa na elaboração do PDOT e dos únicos PDLs aprovados até hoje, em 1997, 2000 e 2001. Na administração do Cristovam, havia 19 regiões administrativas e 19 conselhos locais. Quando o Roriz assumiu, à medida que os mandatos de dois anos dos representantes locais se extinguiam, não houve substituições e os conselhos desapareceram gradativamente. O povo deixou de participar do processo. Só agora no processo de revisão do PDOT é que retomaram a idéia dos conselhos locais.

- Essa retomada da idéia dos conselhos expressa uma mudança de mentalidade?

- Não foi mudança de mentalidade. Longe disso. É preciso fazer algumas considerações. Primeira, qual é a avaliação do PDOT vigente e qual a razão de fazer essa revisão agora? Porque se a Seduh quer a nossa ajuda no processo, temos de saber o que eles acham do PDOT atual e o que querem para o futuro PDOT. Mas em momento algum, tivemos informações técnicas da avaliação do PDOT atual nem do porquê de revisá-lo agora. O argumento da secretária Diana Meirelles é de que a razão de se fazer revisão agora é que ela é exigência do Estatuto das Cidades. Mas isso não é bem verdade. O prazo do Estatuto para a revisão só vence em 2007. Por que então essa pressa toda? Outra coisa. A secretária diz que existe um déficit habitacional de 111 mil famílias e a área de expansão urbana prevista no PDOT atual não é suficiente para atender a essa demanda. E que a solução seria regularizar os condomínios. Mas regularizar os condomínios é atestar a falta de controle e fiscalização. É regularizar o irregular sem discutir o problema principal que é o sistema de fiscalização e controle do uso do solo. Se regularizamos tudo, daqui a alguns anos, teremos de revisar de novo o PDOT para legalizar novas ocupações irregulares. Mas não é só isso. Segundo o IBGE, o déficit habitacional no DF está em torno de 100 mil famílias, mais de 80% das quais são de baixa renda, incluídas aí as que vivem em imóveis sublocados. E segundo o mesmo IBGE, existem no DF 50 mil unidades residenciais construídas, mas fechadas. Não seria preciso investir um tostão, portanto, para resolver metade desse déficit habitacional.

- Mas resolver como, se essas 50 mil unidades são particulares?

- Você tem remédios urbanísticos para isso, como, por exemplo, fazer com que esses imóveis cumpram sua função social. O Estatuto das Cidades prevê impostos progressivos e até a desapropriação dos imóveis com pagamento por meio de títulos da dívida pública. Até agora, o GDF só pôde fazer política habitacional para a população de baixa renda a baixo custo, porque é proprietário de terras. Se vendê-las, será que vamos precisar pagar mais impostos para que o governo compre novas terras para dar continuidade à política de redução do déficit habitacional?

- A senhora falou em pressa na aprovação do processo de revisão do PDOT. A que a senhora atribui isso?

- Essa pressa toda no processo de revisão do PDOT é por conta do ano eleitoral. Tudo é feito sem nenhuma razão técnica específica. A sociedade está sendo usada para legitimar um processo que não é verdadeiro e contraria portarias do Ministério da Cidade que estabelecem regras básicas como a participação dos interessados no processo e o direito à informação dos moradores, que não estão respeitadas. Pouca gente sabe, por exemplo, que a contratação do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal) para prestar assessoria técnica ao processo de revisão do PDOT é um gasto completamente desnecessário. A Seduh conta com técnicos capacitados, que sozinhos têm condições de conduzir com eficiência a revisão do PDOT.

- Mas não é necessário revisar o PDOT para incluir, por exemplo, o debate sobre a criação do Setor Noroeste?

- A previsão de vendas no Setor Noroeste é de 40 mil unidades. Para quê, se temos 50 mil unidades disponíveis? O Noroeste é a última reserva de área de expansão do Plano Piloto. Sem falar que será um gasto adicional desnecessário em infra-estrutura de abastecimento de água e tratamento de esgoto. Além dos imóveis residenciais fechados, temos áreas não construídas no próprio Plano. Na Asa Norte, por exemplo. Tudo bem que pertencem à UnB e a outras instituições, mas existe espaço para isso. Por que preferem o Noroeste? Porque expandir sem critério é mais rápido.

- A revisão não é conveniente, então?

- É conveniente fazer uma revisão, mas conforme determina o Estatuto, com participação da sociedade, que tem o direito de conhecer as avaliações técnicas do processo. Fazer essa avaliação leva tempo. É preciso fazer, por exemplo, o zoneamento ecológico e econômico do Distrito Federal, previsto na Constituição, na Lei Orgânica do DF e no PDOT. Por que então fazer a revisão correndo? Vamos fazer isso mais devagar, a um custo menor e com menos risco de impactos ambientais sérios.

- A partir de quando houve desvios mais graves do plano diretor original?

- O ponto crítico desse processo de desvirtuamento do plano diretor foi o abandono da fiscalização nos últimos oito anos. O meio ambiente foi arrasado. Perdemos a possibilidade de ter a bacia do São Bartolomeu como fonte de abastecimento de água por falta de fiscalização. Se o governo tivesse combatido a ocupação irregular da bacia, não precisaria ter construído Corumbá 4, que, aliás, não resolverá o problema de abastecimento do DF. E há grandes riscos de comprometimento da bacia do Descoberto, também por omissão dos órgãos fiscalizadores. Esse quadro é o resultado da grilagem das terras públicas e das invasões estimuladas inclusive por autoridades. O DF é uma terra de ninguém. Prova disso é Vicente Pires. Não importa que a área seja de propriedade da União, o GDF é o responsável por controlar as edificações. Alguém ali (em Vicente Pires) tem licença ou alvará de aprovação dos projetos? Quem permitiu isso? E os condomínios, algum deles tem alvará? Não. E não é uma invasão aqui, outra acolá. São verdadeiras cidades. Não tem como a fiscalização argumentar que não viu. Isso implica permissão tácita do GDF, que deixou o processo de ocupação irregular correr solto.

- Esses problemas chegam a afetar a preservação da área tombada?

- A área tombada também sofre os reflexos disso. O excesso de carros no Plano é um deles. As áreas dos condomínios não têm escolas, hospitais, parques, equipamentos públicos em geral. A quem os moradores recorrem para atender essas necessidades? Ao Plano Piloto. E aí, o volume de carros cresce sem paralelo. Isso porque nos condomínios irregulares todo metro quadrado é vendido, sem espaço algum reservado para equipamentos públicos. Estamos perdendo também a visibilidade do horizonte. A gente olha para Sobradinho e só vê ocupações. Em Vicente Pires, a mesma coisa. Hoje, as ocupações são horizontais, mas a tendência é a verticalização. E temos também impactos sanitários. Mesmo com o sistema mais depurado de tratamento de esgoto, as novas ocupações colocam o Lago Paranoá no limite da capacidade de absorção do esgoto tratado sem prejudicar a qualidade da água. Tudo isso documentado pela Semarh, que tem um estudo excelente sobre isso, ''Olhares sobre o Paranoá''. Aliás, até parecem que a Seduh e a Semarh pertencem a governos diferentes.

- Qual seria a solução para preservar o Paranoá nesse caso?

- Coletar o esgoto e despejar em outra bacia é uma solução possível. Mas quanto custará e quem pagará pelos custos? O certo mesmo seria promover a ocupação ordenada com respeito ao meio ambiente. A própria Semarh já indicou isso e a Caesb também sugeriu restrições no PDOT para preservar os mananciais. Mas é preciso ouvir mais os técnicos.

- A que a senhora atribui a discussão restrita do projeto que substitui o direito de concessão real de uso pelo direito de superfície, ao regulamentar a questão das varandas?

- À pressão do mercado imboliário. Quando o Código de Edificações foi aprovado, por exemplo, o tamanho mínimo dos cômodos foi estabelecido para otimizar ao máximo a ocupação das projeções para construir o máximo de apartamentos e, com isso, faturar alto. É por isso que a população do DF hoje mora em espaços cada vez mais apertados. A classe média em São Paulo, por exemplo, mora incomparavelmente melhor. Essa aberração foi legado do governo Cristovam.