Correio Braziliense, n. 21697, 12/08/2022. Política, p. 2-3

Brasil não abre mão da democracia

Henrique Lessa
Fernanda Strickland
Taísa Medeiros
Victor Correia
Fabio Grecchi


A leitura da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, ontem de manhã, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, foi um claro recado ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e aos seus apoiadores de que qualquer tentativa de interromper o regime e tumultuar as eleições — desacreditando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e lançando suspeitas sobre a eficácia e a lisura do processo por meio das urnas eletrônicas — não serão tolerados.

 

O evento replicou o manifesto de 1977, lido então pelo jurista Goffredo Telles Júnior, contra a ditadura militar. No ato de ontem de manhã, alguns dos signatários do documento de 45 anos atrás estiveram presentes, o que deu ainda maior significado ao documento.

A leitura foi realizada em conjunto pelas professoras da Faculdade de Direito da USP, Eunice de Jesus Prudente, Maria Paula Dallari Bucci, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, vice-diretora da instituição, e pelo signatário da carta de 1977, o ministro aposentado do Superior Tribunal Militar Flávio Bierrenbach, 82 anos.

As arcadas da faculdade reuniram aproximadamente 1 mil convidados, mas, do lado de fora, no Largo de São Francisco, uma multidão estimada em mais de 8 mil pessoas acompanhava por meio de telões a leitura da carta. Ao término da leitura, estudantes puxaram um coro de “Fora Bolsonaro”, não acompanhado pela organização do evento — que em momento algum citou o presidente da República.

Antes da leitura, o professor Celso Campilongo, diretor da faculdade, afirmou que a o país segue com ameaças ao processo eleitoral, “nesse momento em que deveríamos estar vivendo apenas a festa da democracia”. Segundo ressaltou, a competência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é inquestionável.

“A competência é exclusiva do TSE, o resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, salientou, acrescentando que “a única força que pode dizer algo sobre o processo eleitoral brasileiro, é a força do eleitor, é a força do brasileiro — e ninguém mais”.

Para o advogado trabalhista Roberto Mônaco, 63, um dos idealizadores da carta de 1977, a emoção do reencontro com os colegas e a renovação de 2022 foi um dos fatores mais marcantes. “É o encontro da história com a energia militante do presente. É essa energia que precisaremos para manter a democracia e o estado de direito”, destacou.

Para o também idealizador do documento e aluno da turma de 1977, o procurador de Justiça do estado de São Paulo Luiz Marrey, 67, “o ato foi um sucesso e as pessoas deixaram claro o seu sentimento em defesa da democracia”.

Indústria

Pouco antes do lançamento da carta — que já passa de um milhão de signatários —, o salão nobre da Faculdade de Direito recebeu o lançamento simbólico do manifesto das entidades da sociedade civil pela democracia. O documento, encabeçado pela instituição acadêmica e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conta com o apoio de entidades de variados espectros, como sindicais (Central Única dos Trabalhadores/CUT), estudantis (União Nacional dos Estudantes/UNE), patronais (Fiesp e Federação Brasileira dos Bancos/Febraban) e de classe (seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil), entre outras.

O advogado e ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, José Carlos Dias, fez a leitura do manifesto, que terminou sob forte aplauso dos presentes.

Repercussão

The Guardian

Manifesto popular alerta que a democracia brasileira está diante de “imenso perigo”

The Washington Post

Brasileiros se mobilizam pela democracia e para deter Bolsonaro

El Pais

Quase um milhão de brasileiros assinam manifesto contra a escalada autoritária de Bolsonaro

Clarín

Brasil se mobiliza em defesa da democracia e enfrenta Jair Bolsonaro

Le Figaro

O alerta dos brasileiros a Bolsonaro

El Observador

Manifesto pela democracia exige que Bolsonaro respeite as eleições

Público

Onda de manifestações no Brasil em defesa da democracia: “Queremos eleições livres e tranquilas”

Reuters

Manifestos pró-democracia do Brasil visam conter ameaças eleitorais de Bolsonaro

 

Fachin: não se pode flertar com o retrocesso

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Edson Fachin, divulgou, também ontem, uma carta sobre os manifestos pela preservação do estado de direito que se multiplicaram pelo país. Em tom contundente, o ministro destacou que a defesa da ordem democrática e da dignidade humana “impõe a rejeição categórica do flertar com o retrocesso e, com isso, a recusa incondicionada e a improtelável coibição de práticas desinformativas que pretendem, com perfumaria retórica e pretextos inventados, justificar a injustificável rejeição do julgamento popular.”

Segundo o presidente do TSE, “a inexistência de fraudes é um dado observável, facilmente constatado a partir da aplicação de procedimentos de conferência previstos em lei. Há, para tanto, ferramentas tecnológicas e jurídicas aptas à solução de dúvidas, pelo que inexistem razões lógicas, éticas ou legais para que se defenda, com malabarismos argumentativos, a falência do Estado constitucional, com a destituição, pela força bruta, do controle eleitoral atribuído às maiorias”.

Já o próximo presidente do TSE, Alexandre de Moraes — ele assume o comando da corte a partir do dia 16 —, elogiou os atos que se espalharam pelo país. “No histórico dia 11/8, a Faculdade de Direito da USP foi palco de importantes atos em defesa do Estado de Direito e das Instituições, reforçando o orgulho na solidez e fortaleza da Democracia e em nosso sistema eleitoral, alicerces essenciais para o desenvolvimento do Brasil”, tuitou. O magistrado esteve, também ontem, no Palácio do Planalto para entregar ao presidente Jair Bolsonaro (PL) o convite para sua posse no TSE. Ele estava acompanhado do ministro Ricardo Lewandowski, que assumirá a vice-presidência do tribunal.

Pelo país

Horas depois do evento na USP, o vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp) abrigou outra manifestação em defesa da democracia, que reuniu movimentos populares e sindicatos. O grupo levou faixas de protesto contra Bolsonaro com críticas às ameaças do presidente ao sistema eleitoral e ao voto eletrônico.

O ato de São Paulo foi transmitido ao vivo para outras 59 faculdades de direito e houve mobilizações nas 27 unidades da Federação. Em Belo Horizonte, em frente a Faculdade de Direito da UFMG, centenas de pessoas gritaram “ditadura nunca mais”. Já em Porto Alegre, os protestos iniciaram na Faculdade de Direito da UFRGS, onde foi lida uma mensagem do ministro Edson Fachin, depois estudantes e movimentos sociais caminharam pela avenida João Pessoa.

Em Salvador, os estudantes caminharam pelo centro da cidade e terminaram o protesto na Praça Castro Alves. No Recife, o ato aconteceu nas escadarias da Faculdade de Direito da UFPE. E em Fortaleza, a Faculdade de Direito da UFCE foi o palco também das maiores mobilizações.

No Rio de Janeiro, a carta da USP foi lida em atos na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Houve manifestações também na Cinelândia e na Candelária, no Centro da capital fluminense. (HL e FG, com Agência Estado).

Na UnB, recado aos militares.


Brasília também foi palco de atos em favor da democracia e o principal evento foi na Universidade de Brasília (UnB), com a presença de estudantes, professores e representantes sindicais. O documento elaborado pela instituição foi contundente ao criticar a atuação dos militares no atual processo eleitoral, considerando que é indevida e inadequada.

“Ao presidente da República cabe manter, defender e cumprir a Constituição, respeitando, entre outros, o princípio da separação e do livre exercício dos poderes. (...) Não compete ao ministro da Defesa interferir no processo eleitoral e nem é das Forças Armadas a condução desse processo (...). São inadmissíveis, assim, os ataques reiterados do chefe do Poder Executivo ao TSE e ao sistema eletrônico de votação, com apoio de integrantes das Forças Armadas; são intoleráveis as ofensas pessoais às autoridades do Poder Judiciário”, apontou o documento da UnB.

No evento da universidade, foram lidas quatro cartas: uma dos estudantes de direito, uma da Faculdade de Direito, uma da Coalizão em Defesa do Sistema Eleitoral, além da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito — a mesma que foi lida na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo.

Mas não houve manifestações apenas na UnB. À tarde, movimentos de várias correntes organizaram um ato na Esplanada dos Ministérios. A concentração foi em frente à Biblioteca Nacional e dali os participantes saíram em direção ao gramado em frente ao Congresso — onde vários discursos foram feitos. Ao final, todos dirigiram-se para o Teatro Nacional.

O ato foi composto, principalmente, por estudantes e movimentos estudantis, uma vez que ontem também celebrado o Dia Nacional do Estudante. Participam movimentos como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União da Juventude Socialista (UJS), o movimento jovem Juntos! e partidos de esquerda — como o PCB, PT, PV e PSol.

 

Congresso

No Congresso, a principal manifestação foi a do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ele utilizou as redes sociais para também defender a democracia e enfatizar o papel do Poder Legislativo na garantia de direitos.

“O Congresso Nacional sempre será o guardião da democracia e não aceitará qualquer movimento que signifique retrocesso e autoritarismo. Não há a menor dúvida de que a solução para os problemas do país passa necessariamente pela presença do Estado de direito, pelo respeito às instituições e apoio irrestrito às manifestações pacíficas, à liberdade de expressão e ao processo eleitoral. Desenvolvimento, bem-estar e justiça só prosperam em ambiente de livre pensamento, base da verdadeira pátria livre e soberania”, tuitou Pacheco.

O presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL) e é um dos caciques do Centrão, manifestou-se mais timidamente em relação aos atos em todo o país. “A Câmara dos Deputados é o coração e a síntese da democracia. É a sua representação maior, pela sua diversidade e convivência harmônica e permanente dos divergentes”, publicou.

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Bolsonaro publica ironia e desvia o foco

 

Para Jair Bolsonaro (PL), ontem foi um dia importante, sim, mas não por causa dos manifestos que se espalharam pelo país em defesa da democracia. O presidente preferiu desviar o assunto e chamar a atenção, na sua conta do Twitter, para a mais uma redução no preço do óleo diesel.

“Hoje, aconteceu um ato muito importante em prol do Brasil e de grande relevância para o povo brasileiro: a Petrobrás reduziu, mais uma vez, o preço do diesel. A redução representa queda de R$ 0,22 por litro. O presente mês acumula redução de R$ 0,42 por litro de diesel. Já estamos entre os países com o menor preço médio de combustíveis do mundo, no cenário atual”, publicou.

Se Bolsonaro preferiu se ater à questão dos combustíveis, o mesmo não fez o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Ele decidiu atacar as manifestações e, embora em momento algum o presidente tenha sido citado nos discursos ou nos documentos que foram lidos, classificou os atos como sendo articulados pela oposição ao governo.

“Ato pela democracia? Sim! Ato pela democracia de fazer um Ato de oposição! Um ato contra o governo é democrático. Mas tem que ser chamado pelo que é: ato pela democracia de fazer oposição. A democracia não tem disfarces”, tuitou. Mais cedo, ele se alinhou a Bolsonaro e também citou a queda no preço do diesel.

Mas, se o presidente buscou tratar de outro tema que não os atos em defesa da democracia, seus adversários na corrida presidencial enfatizaram a necessidade de defendê-la. O petista Luiz Inácio Lula da Silva ligou o estado de direito aos avanços sociais e às pautas que fazem parte do seu plano de governo.

“Defender a democracia é defender o direito a uma alimentação de qualidade, a um bom emprego, salário justo, acesso à saúde e educação. Aquilo que o povo brasileiro deveria ter. Nosso país era soberano e respeitado. Precisamos, juntos, recuperá-lo”, conclamou.

Mãos dadas

Lula retuitou, ainda, uma postagem do seu vice, Geraldo Alckmin. “Os brasileiros deram as mãos hoje para defender a democracia. É um 11 de agosto histórico. Como em 1977, estamos unidos pelo que mais importa. As pessoas passam, mas as instituições ficam. Vamos juntos reconstruir o Brasil”, exortou.

Ciro Gomes, candidato do PDT, deixou claro que as manifestações foram uma reação ao presidente. “Um momento de união de diferentes segmentos contra os recorrentes ataques de Bolsonaro aos nossos direitos, ao sistema eleitoral e ao próprio regime democrático — que é a maior de todas as nossas conquistas. Este é um compromisso de todos nós”, tuitou.

A candidata do MDB à Presidência, Simone Tebet, em publicação na rede social, foi outra que exaltou os atos de ontem. “Estado de Direito sempre! No Dia do Estudante, no histórico dia 11 de agosto, a sociedade levanta sua voz em defesa da democracia. Assinei o manifesto. Tenham certeza do meu compromisso. Minha candidatura representa exatamente isso: democracia sempre. Tolerância, paz e respeito.”

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