Título: O respeito à vida
Autor: Eduardo M. Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 25/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Das lembranças mais vivas que tenho de meu pai, Paulo Cochrane Suplicy, falecido aos 80 anos em 1977, destaco suas palavras sobre por que preferia nunca ter armas em casa, no automóvel ou mesmo ao seu alcance. Lembro que sempre recomendava aos 11 filhos - sou o oitavo - que respeitassem os outros, evitando ficar com raiva ou furiosos com os interlocutores, por mais difícil que pudesse ser a situação. Ao mesmo tempo, recomendava que fôssemos assertivos, defendendo com firmeza o nosso ponto de vista, fosse qual fosse, garantindo assim o respeito dos outros.

Com freqüência, meu pai relatava casos de vítimas de violência, de acidentes domésticos ou ocorridos na rua, pessoas que morriam ou estavam gravemente feridas, atingidas por armas de fogo que, se não estivessem próximas, a tragédia seria evitada. Para mim, seus ensinamentos foram fortes, tanto que até hoje, aos 64 anos, nunca senti necessidade de ter arma de fogo em casa.

Com o passar dos anos, tornei-me cada vez mais um admirador dos defensoras de transformações na sociedade por meios não violentos. Aprendi a admirar as teses e os exemplos de Mahatma Gandhi e de Martin Luther King Jr., de que devemos lutar pelo que acreditamos com toda a nossa força, sem nos conformar com a lentidão das transformações, mas sempre procurando enfrentar a força física com a força da alma.

É com entusiasmo e convicção que vou participar e registrar o meu voto a favor do desarmamento no Brasil no dia 23 de outubro. Em primeiro lugar, creio que é preciso saudar a utilização, entre nós, do instrumento de consulta popular, como o referendo e o plebiscito, para a tomada de decisões que afetam toda a população. É muito positivo que as recomendações nesse sentido de grandes juristas como Fabio Konder Comparatto, Dalmo de Abreu Dallari e Celso Antonio Bandeira de Mello comecem a ser colocadas em prática.

Segundo, respeitando as vozes daqueles que acreditam ser necessário a liberdade de comercialização de armas de fogo, sobretudo, como dizem, para que possam se defender de bandidos, de assaltantes ou até de estupradores de suas mulheres ou filhas, lembro os argumentos que têm sido expostos pelo ministro da Justiça, Márcio Tomás Bastos e pelos que vêm se empenhando a favor do ''Sim'' no referendo, como o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB), e o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh.

Os números demonstram bem: houve um aumento significativo no número de mortes por armas de fogo no Brasil nos últimos 13 anos. Em 1992, foram 16.729. Em 1998, 30.211. Em 2003, 39.325. Foi então que se desencadeou uma forte reação, com a aprovação do Estatuto do Desarmamento e da campanha da entrega de armas, com resultados positivos. O número de homicídios por armas de fogo, em 2004, caiu para 36.119.

O Estatuto do Desarmamento assegurou ao Poder Executivo os meios de se controlar o comércio e o uso de armas de fogo e ainda estimulou a população a entregar as suas para reduzir o estoque das existentes. De julho de 2004, quando se iniciou a campanha de recolhimento, até início de setembro o governo já havia recolhido 451.542 armas. Espera poder completar mais de 500 mil armas recolhidas até a data do referendo.

Os números do Ministério da Saúde mostram que a maior diminuição de mortes por amas de fogo se deu exatamente nas regiões do Brasil onde as campanhas de recolhimento foram mais bem-sucedidas, como São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco. Estima o ministro da Justiça que essa campanha possa explicar as 5.563 vidas poupadas em 2004.

Na verdade, segundo levantamento do FBI, para cada sucesso no uso defensivo com arma de fogo, há 185 mortes com essas próprias armas. É uma questão de bom senso: basta lembrar quantas vezes observamos desavenças banais, que certamente poderiam ser resolvidas por meio do diálogo e da negociação, transformar-se em tragédias irreversíveis. Diariamente, no trânsito pesado das cidades, por exemplo, muitos motoristas perdem a cabeça e passam a se xingar, por pouco não chegando a brigas físicas, que às vezes acontecem de fato. Se um deles tiver uma arma, a probabilidade de tragédia é altíssima.

Para viver num Brasil mais seguro teremos de fazer muito mais para que nossa sociedade se torne mais justa e, em conseqüência, resulte na paz social. O ''Sim'', pelo desarmamento, é um passo na direção correta.