O Estado de São Paulo, n. 46820, 25/12/2021. Notas & Informações p.A3

 

De novo o golpe

 

Em evento da Agência Brasileira de Inteligência, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, disse que tem de tomar “dois Lexotan na veia por dia” para não induzir o presidente Jair Bolsonaro a tomar uma atitude drástica contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Poucos dias depois, o senador Flávio Bolsonaro declarou à revista Veja que no 7 de Setembro Bolsonaro estava “saturado” com as decisões do Judiciário e que “todo mundo estava acreditando que o presidente iria causar uma ruptura institucional”. Na narrativa de Flávio, o pai, “em sua sabedoria”, resistiu e resiste a pressões golpistas “pelo bem do Brasil”.

Como que a desmenti-lo, apenas poucas horas antes Bolsonaro afirmou a uma plateia de empresários que, caso a decisão do STF a propósito do marco temporal de terras indígenas não esteja de acordo com a sua vontade, ele terá de “tomar uma decisão”.

É estupefaciente que, enquanto o País luta para vencer desafios graves, como a nova cepa do vírus, a inflação, o desemprego ou a aprovação do Orçamento, o próprio governo volte a fabricar tensões artificiais.

Exumar uma suposta conspirata engendrada por congressistas e ministros do STF para derrubar Bolsonaro, como fez Flávio Bolsonaro em sua entrevista, sugere uma tática desesperada. Pesquisas recentes mostram que as intenções de voto para Luiz Inácio Lula da Silva cresceram quase na mesma proporção da rejeição a Bolsonaro.

O confronto é o ar que Bolsonaro respira. Toda vez que se vê em uma situação adversa, incita suas tropas invocando ameaças ao “povo” que só poderiam ser respondidas com soluções autoritárias. O pretexto é o que estiver ao alcance da mão – pode ser a investigação de um blogueiro ou uma decisão sobre o marco temporal –, e quando não há nada, simplesmente saca do vácuo um factoide, como a fraude das urnas eletrônicas.

Não que haja risco iminente de ruptura. A esta altura já está claro que, se Bolsonaro não parte para as vias de fato, é muito menos por sua “sabedoria” do que por sua impotência.

Mas o constante “morde e assopra” desvia a atenção do País dos problemas reais e degrada a institucionalidade democrática. O verdadeiro risco é que a sociedade, enfastiada com as investidas antirrepublicanas do próprio governo, se habitue a contemporizá-las ou, pior, torne-se indiferente.

O presidente é o primeiro a promover essa confusão. Em setembro, apenas dois dias depois de dizer a seus apoiadores que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes e que se o presidente do STF não enquadrasse o Poder Judiciário ele poderia “sofrer aquilo que nós não queremos”, Bolsonaro publicou sua Declaração à Nação alegando que nunca teve a “intenção de agredir quaisquer dos Poderes” e que suas palavras “decorrem do calor do momento”. Neste mês, o presidente quebrou a trégua e voltou a hostilizar o ministro.

Tanto pior quando a complacência é estimulada pelas próprias instituições democráticas. Haja vista a renitente negligência da Procuradoria-geral da República ou as esquivas do Congresso para responsabilizar o presidente por seus abusos. Repetidamente a sociedade é instada por alguma autoridade governista a fazer vista grossa ao jeito “espontâneo” do presidente, como quem condescende às pirraças de um menino mimado.

Este é um governo que se jacta de ser o guardião da lei e da ordem, mas que a todo momento insufla a subversão. Não que seja capaz de levá-la a cabo. Até para ser autoritário Jair Bolsonaro é incompetente. Mas, justamente para camuflar essa incompetência sob uma cortina de fumaça, ele dá azo, de quando em quando, aos seus pendores autoritários, fabricando crises artificiais.

A sociedade brasileira não teme seriamente um golpe. Já está claro que Bolsonaro não teria apoio para essa aventura. Mas, enquanto ele tiver em mãos o Poder Executivo, não é uma opção para os brasileiros deixá-lo falando sozinho. Já em 2022 a chance estará ao alcance de todos. Com o toque de um botão, os eleitores poderão livrar o País deste estorvo e, de quebra, abrir caminho para que ele acerte suas contas com a Justiça.