Valor Econômico, v. 20, n. 4885, 22/11/2019. Opinião, p. A19

S.A. do futebol é proposta cosmética
Pedro Teixeira


Circulam algumas propostas legislativas que abordam a criação da Sociedade Anônima do Futebol, com o intuito de melhorar a capacidade de gestão dos clubes de futebol e atrair investidores. No entanto, a SAF é um modelo que está a anos-luz de ser a solução que estamos precisando e tampouco representa uma ideia nova.

Desde 2005 com o PL 6.461/2005, diversos projetos foram discutidos no Congresso sobre a criação de um modelo específico de sociedade anônima para o futebol. Todos sem sucesso, porque a confecção de um novo tipo societário é uma proposta legislativa meramente cosmética que não endereça os principais problemas do futebol brasileiro, beneficiando pouquíssimos em detrimento de muitos. Vale comparar com exemplos do que já foi feito e está sendo realizado lá fora.

Na Inglaterra, onde a Premier League se mostra a liga mais lucrativa do planeta com larga vantagem sobre as demais, e com quatro times protagonizando as duas finais das últimas edições da Liga dos Campeões (Liverpool e Tottenham Hotspur) e da Liga Europa da UEFA (Chelsea e Arsenal), não há tipo societário exclusivo. Clubes de futebol usualmente se constituem como sociedades anônimas de capital aberto (public limited company) ou fechado (limited liability companies) e seguem as obrigações normais das sociedades anônimas daquele país. Funciona como uma sociedade mercantil pura e simples.

Nos Estados Unidos, com a Major League Soccer em franca expansão, não houve imprescindibilidade de se pensar em um tipo societário próprio para viabilizar o crescimento do mercado futebolístico verificado nos últimos anos e com prognósticos animadores.

Na Alemanha, que após a conquista da Copa do Mundo de 2014 se tornou arquétipo de organização para o futebol brasileiro, também não há uma legislação específica sobre sociedades desportivas. Em 1999, a Bundesliga - liga profissional de futebol do país -, autorizou a transformação dos setores profissionais em sociedades comerciais, podendo-se adotar os seguintes modelos, para além da forma associativa: Gesellschaft mit beschränkter Haftung (GmbH) equivalente à sociedade de responsabilidade limitada; Kommanditgesellschaft auf Aktien (KGaA) correspondente à sociedade em comandita por ações; e Aktiengesellschaft (AG) proporcional à sociedade anônima.

Na Espanha, onde houve a obrigatoriedade de migração para Sociedade Anônima Desportiva, à exceção de Real Madrid, Barcelona, Athletic Bilbao e Osasuna, o sucesso do modelo é extremamente discutível. Além das diversas críticas históricas, somam-se os resultados não muito animadores apresentados pelas equipes nos últimos anos. Em 2008, oito Sociedades Anônimas Desportivas da Espanha (Sporting, Levante,

Málaga, Murcia, Alavés, Las Palmas, Celta e Real Sociedad) já tinham ingressado com pedido de recuperação judicial, e estimava-se, à época, que muitas outras equipes estariam na mesma situação do ponto de vista técnico, mesmo que ainda não houvesse efetivado no plano jurídico.

O modelo espanhol não alterou o quadro de grave crise econômica apresentado na década de 1980 e que motivou a obrigatoriedade na migração do formato, quiçá, tão somente prolongou os problemas apresentados à época. Como se vê, não se evitou a difícil situação econômica dos clubes e tampouco provocou uma alteração efetiva na gestão das equipes. O que se fala agora na Espanha é uma tendência de que a liberdade para se optar pelo modelo jurídico a ser adotado volte para as decisões internas de cada clube.

Em Portugal, o mito da Sociedade Anônima Desportiva já encontra restrições. Basta conversar com um “adepto” do Sport Clube Beira-Mar, do Atlético Clube de Portugal, do União Desportiva de Leiria e, recentemente, do Clube de Futebol os Belenenses, que se compreenderá que o tipo societário específico equivalente à versão tupiniquim da Sociedade Anônima do Futebol está distante de ser a panaceia lusitana de todos os males. Além disso, Benfica, Porto e Sporting Clube ainda não encontraram o equilíbrio financeiro das contas, oscilando anualmente entre perdas e ganhos.

No Chile, a maioria das equipes se transformou em Sociedade Anônima Desportiva Profissional (SADP). A mudança na forma estrutural das equipes, apesar de ter gerado mais controle, não bastou para uma melhora na gestão e nem na frágil situação econômico-financeira. O futebol chileno ainda convive com uma situação caótica, em que os clubes vêm apresentando balanços negativos e vendo as suas dívidas aumentarem cada vez mais. No último mês, foi amplamente repercutido na imprensa que o Universidad de Chile, em crise financeira aguda, cortou até a oferta de xampu aos atletas no vestiário.

O Uruguai, em 2001, foi o primeiro país sul-americano a regular a nova figura da Sociedade Anônima Desportiva. De forma mais liberal, não houve a imposição de um regime jurídico como observado na Espanha. Assinala-se que, ainda que opcional, para além dos modelos associativo e SAD, não havia qualquer impedimento para que os clubes adotassem outros modelos comerciais admitidos na lei uruguaia. Contudo, nesses casos, a entidade de prática desportiva não se beneficiaria de eventuais benesses conferidas pela lei específica da SAD, como por exemplo, a exoneração tributária.

Não obstante, ainda que diante da criação de um modelo jurídico similar aos existentes na Europa e contando com alguns incentivos, como os fiscais, os clubes, em sua maioria, incluindo os dois principais - Nacional e Peñarol -, em razão da política interna, permanecem sob a forma associativa, não tendo a SAD logrado êxito no incentivo à transformação para a forma empresarial. A SAD foi uma “lei que não pegou”.

O debate sobre a criação da Sociedade Anônima do Futebol não resolve nenhum dos principais problemas do setor. Como brasileiro, torcedor e apaixonado pelo futebol, não concordo com um projeto que amplia a desigualdade do esporte, privilegia os clubes mais ricos, não observa as experiências internacionais e caminha no sentido contrário da visão econômica do atual momento do país.

Pedro F. Teixeira é advogado especialista direito empresarial, professor da FGV-Rio e presidente da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ.