Valor Econômico, v. 20, n. 4805, 01/08/2019. Opinião, p. A16

O imposto único e a ilusão da simplicidade
Eduardo Fleury



A ideia do imposto único atrai pela ilusão da simplicidade. O fato de o sistema tributário brasileiro ser um dos mais complexos do mundo facilita a venda desta ideia. A pretensa simplicidade esconde uma série de perigos que afetaria os negócios em geral e a estabilidade fiscal.

A proposta defendida atualmente consiste na aplicação de alíquota uniforme de 2,5% sobre o débito e o crédito de movimentações financeiras, totalizando 5% sobre cada pagamento. Neste formato, o imposto único (IU) deveria arrecadar valor suficiente para substituir a maioria dos tributos existentes hoje no país. A cobrança seria cumulativa, isto é, o imposto cobrado na etapa anterior se transforma em custo compondo a base do imposto na próxima etapa.

A teoria microeconômica diz que imposto cumulativo é prejudicial à economia. Por que? Simples, um produto será mais barato do que o outro não em razão do seu custo ou eficiência na produção, mas sim em vista do número de elos da cadeia produtiva do bem. Explicando melhor: a empresa investe para melhorar o processo produtivo, contrata fornecedores qualificados e eficientes, terceiriza a distribuição com empresa de logística especializada, e aí vem o concorrente verticaliza a produção e distribuição e ganha 5% no preço. Na experiência brasileira, a primeira empresa do setor a verticalizar será a menos eficiente.

 

A cumulatividade também distorce a escolha do consumidor, visto que gera preços artificialmente maiores para produtos com cadeias produtivas mais longas. Na escolha entre comprar um produto ou outro, o consumidor compara o preço/benefício de cada um deles (efeito substituição). Com o preço elevado pela cumulatividade e o benefício sendo o mesmo, a cesta de bens escolhida pelo consumidor terá benefício total menor do que teria com um imposto não cumulativo que afeta igualmente o preço dos bens.

As exportações também são afetadas pela cumulatividade, pois exportaremos produtos com o imposto cobrado em todas as etapas.

A aplicação do imposto único sobre a renda seria bastante regressiva. Salários reduzidos seriam tributados à mesma alíquota (5%) do que as remunerações mais altas. Argumenta-se que, ainda assim, a alíquota seria menor do que as aplicadas para maior parte das faixas de renda da tabela do IRPF. Temos um erro conceitual aqui. O IR não é mais ou menos progressivo pelo tamanho da alíquota, mas sim pela diferença entre a maior e menor alíquota e pela distância entre as faixas de renda. Portanto, um imposto único a 5% atingindo todas as faixas de renda seria regressivo.

Olhando para o efeito da cumulatividade na cadeia produtiva podemos fazer o seguinte exercício. Usando 5 etapas para cada cadeia produtiva e considerando os preços de cada etapa como 10, 30, 60, 80 e 100, chegamos à conclusão que a carga do imposto único é de 14,85% na cadeia simulada. Assim, é razoável afirmar que, à alíquota de 2,5%, a referida cadeia teria uma carga inferior à atual e em relação a um eventual IVA de alíquota de 25%.

Mesmo considerando que a incidência do imposto único sobre salários, dividendos e juros arrecade algo próximo de 5% do PIB, ainda ficaríamos distante da carga tributária de 2017 (32,43%).

Além de regressivo, imposto único pode se revelar ineficaz para arrecadar os recursos necessários ao país

Segundo os defensores da proposta, a tributação da economia informal garantiria os recursos adicionais necessários. Pesquisa do Instituto ETCO e da FGV/Ibre calcula que a economia informal corresponde a 16,6% do PIB (2017). Sem levar em conta que os negócios não formalizados evitam as transações bancárias, e utilizando-se da simulação acima, a economia informal arrecadaria algo próximo a 3,3% do PIB, não sendo suficiente para atingir os 32,43% necessários.

Uma outra forma de demonstrar que esta alíquota seria insuficiente para arrecadar os recursos necessários é utilizar os dados do Red Book do BIS (Banco de Compensações Internacionais). Esta pesquisa contém o valor total de pagamentos que são realizados através de instituições financeiras (cashless payments) no Brasil. Este dado não inclui os pagamentos entre instituições financeiras, que não eram incluídos na CPMF e que não devem entrar na base do imposto único.

O valor dos cashless payments poderia ser considerado a base tributária do imposto único. Para entender o quanto desta base pode "responder" à cobrança do imposto, utilizaremos metodologia semelhante à aplicada por Honohan e Yoder (2011). Em 2007, último ano da CPMF, a alíquota de 0,38% aplicada sobre o valor dos cashless payments equivaleria a R$ 63,39 bilhões. No entanto, o valor efetivamente arrecadado foi de R$ 36,32 bilhões. A resposta da alíquota aplicada à base foi, então, de 57%. Cabe ressaltar que para o ano de 2007, os dados do BIS estão incompletos e, desta forma, o grau de resposta pode ser ainda menor.

Para 2017, aplicando-se a alíquota de 5% sobre a base e considerando o grau de resposta de 57%, teríamos uma arrecadação de R$ 1,366,53 trilhão, correspondente a uma carga de 20,83% do PIB, abaixo dos 32,43%. Precisaríamos de uma alíquota de 7,78% (3,89% aplicado tanto para o débito e crédito) para gerar os recursos necessários.

Com uma alíquota de 7,78% as distorções mencionadas neste texto seriam piores ainda e a carga sobre a cadeia produtiva simulada (23,88%) já praticamente se igualaria com a de um IVA a 25%, com a vantagem que o IVA não gera distorções.

Adicionalmente, com uma alíquota mais elevada haveria um incentivo ainda maior para que os agentes econômicos fugissem da base do imposto. Utilizando-se os dados do BIS, podemos verificar que o volume dos noncash payments corresponde a 7,3 vezes o PIB brasileiro. Países como Itália (5,1), Turquia (4,7), Suécia (3,6), Canadá (3,2) e Cingapura (2,8) têm múltiplos inferiores ao do Brasil. Embora este múltiplo reflita peculiaridades do sistema de pagamento de cada país, ele também pode indicar que o volume de pagamentos pode ser reduzido em vista da cobrança do imposto, sem que isso represente um descumprimento da regra legal de cobrança. Uma das operações que podem reduzir a base, legalmente, seria exatamente a verticalização dos negócios, indo na contramão da produtividade e eficiência.

Adiciona-se a tudo isso a economia digital, que criou meios de pagamentos e criptomoedas que fugiriam do controle das autoridades tributárias e teriam impacto considerável no valor arrecadado, levando à necessidade de novos aumentos de alíquotas.

O imposto único é instrumento de arrecadação causador de distorções na economia que crescem exponencialmente em razão de sua alíquota. Mais ainda, ele pode se revelar ineficaz para arrecadar os recursos necessários ao país. No sistema tributário a simplicidade não pode ser um princípio em si mesma.