Valor Econômico, v. 20, n. 4805, 01/08/2019. Legislação e Tributos, p. E2

Nada é tão ruim que não possa piorar

Gustavo Brigagão


 

Nosso sistema tributário é único no mundo. Atribui competência para a tributação da venda de mercadorias e serviços às três esferas da Federação, do que decorrem inevitáveis vácuos legislativos, bem como indesejadas sobreposições de incidências, que se agravam com o avanço da tecnologia e com a consequente obsolescência dos conceitos definidores daquelas competências tributárias.

Ao examinarem esses conflitos, e sob o pretexto de que a referida obsolescência justificaria o elastecimento dos referidos conceitos, os nossos tribunais superiores acabam por ampliá-los demasiadamente, do que decorre a indevida extrapolação do âmbito de incidências estaduais e municipais e, ao contrário do que se pretende, a inexorável exacerbação do cenário conflituoso.

Os contribuintes assistem a tudo isso em estado de absoluta perplexidade, sem saber o que e a quem pagar.

Devemos nos concentrar em alternativas que apresentem viabilidade de melhorar o cenário atual, e não nas que venham a destruí-lo de vez

Indiscutível, portanto, que o nosso cinquentenário sistema tributário é obsoleto e necessita de urgentes reformas, principalmente para adequá-lo ao resto do mundo e colocá-lo em paridade com os 168 países que adotam o denominado Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

Esse é o lado positivo dos dois principais projetos de reforma que tramitam no Congresso Nacional: a simplicidade inerente à substituição de uma série de tributos em vigor por um único tributo, o IBS, que siga a mesma sistemática de tributação do IVA, adotada no resto do mundo.

Quais seriam, então, os aspectos negativos? A experiência mostra que para lograrem êxito as propostas de reforma devem estar apoiadas em três suportes: o político, o jurídico e o econômico.

Se olharmos para trás, temos testemunhado, desde 1995, a apresentação consecutiva de projetos de reforma tributária que ruíram por ausência de suporte político. De fato, para que sejam abrangentes e possam atingir os efeitos desejados - entre eles, a unificação da tributação indireta - os projetos pressupõem novo pacto federativo, do que decorre, necessariamente, a perda, ainda que parcial, do poder de tributar e de isentar.

Apesar das intensas negociações havidas com os representantes das três esferas da Federação, ainda não há como saber se o novo pacto será efetivamente alcançado, para a viabilização política de qualquer desses dois projetos.

Quanto aos suportes jurídico e econômico, trazem preocupação os reiterados questionamentos feitos pela academia quanto à constitucionalidade das novas regras, principalmente em face dos princípios do federalismo e da seletividade, bem como a previsão de alíquota única proposta na PEC 45/19 para tributar o consumo, que, segundo se prevê, girará em torno de 25%.

Entre as mais prejudicadas pela aplicação dessa alíquota majorada, estarão as sociedades prestadoras de serviços profissionais - compostas por médicos, dentistas, advogados, arquitetos etc. - porque, praticamente, não fazem aquisições de "insumos" que lhes propiciem créditos relevantes. E o fato de essas sociedades passarem a propiciar créditos para quem venha a ser beneficiário dos seus serviços será absolutamente irrelevante para a suavização da inegável elevação de carga tributária a que estarão sujeitas com o novo tributo, que poderá chegar ao incrível patamar de 500%.

Isso, sem contar com a malfadada tributação da distribuição de dividendos pretendida pelo governo federal que, se aprovada, fará com que essas atividades sejam submetidas a níveis recordes de tributação.

Para competir com essa proposta de criação de um IVA abrangente, soluções alternativas têm sido apresentadas e renovadas a cada instante, como a que propõe fazer a reforma somente no âmbito federal (proposta essa que me parece de constitucionalidade duvidosa, por motivos que explicarei em outra oportunidade), ou a que tem por objeto a criação de um imposto único que, num passe de mágica, substituirá praticamente todos os tributos existentes no nosso ordenamento, e tributará as movimentações financeiras em 5% (2,5% devidos por quem emite o cheque e 2,5%, por quem o recebe).

Aos olhos leigos, essa última proposta pode parecer sedutora, pela simplicidade que lhe é peculiar, mas configura absoluto retrocesso e será perniciosa pelas mais diversas razões: é cumulativa e, consequentemente, excessivamente onerosa em cadeias longas de industrialização e comercialização de mercadorias, com todos os efeitos econômicos danosos daí resultante. Incide em situações em que há absoluta ausência de demonstração de capacidade contributiva, o que lhe retira a legitimidade (venda de bens com prejuízo, por exemplo).

Ela não impede nem desestimula a sonegação; ao inverso, incentiva a migração de contribuintes para a informalidade; onera excessivamente o acesso ao crédito a curto prazo; deixa imune à incidência de tributos inúmeras outras manifestações de riqueza (patrimoniais, por exemplo) e impede que a tributação seja exercida com finalidade extrafiscal ou regulatória. Enfim, são tantas as causas, que o espaço seria insuficiente para tratar de todas.

O que temos, em suma, é que o nosso sistema tributário nacional agoniza e necessita de urgente intervenção e remodelação. Quanto a isso, há unanimidade. Devemos, contudo, nos concentrar em alternativas que apresentem alguma viabilidade de melhorar o cenário atual, e não nas que venham a destruí-lo de vez.