O Globo, n. 32666, 13/01/2023. Política, p. 4

PDF do golpe

Aguirre Talento
Bruno Abbud
Fernanda Trisotto


Com a prisão decretada sob suspeita de ter sabotado o planejamento de segurança em Brasília no último domingo, propiciando as invasões golpistas na Praça dos Três Poderes, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres mantinha em sua casa o esboço de um decreto a ser assinado pelo então presidente Jair Bolsonaro para fazer uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele teria poderes de suspender direitos de ministro da Corte e de instalar uma comissão para revisar o resultado da eleição da qual saiu derrotado.

O documento determinava a implementação do “estado de Defesa” na Corte para uma suposta preservação da “lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022”. O decreto, impresso em três páginas, foi encontrado anteontem, quando a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão na residência de Torres por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). A existência do esboço foi noticiada primeiramente pelo jornal “Folha de S.Paulo”, e confirmada pelo GLOBO.

O texto da proposta previa a suspensão do “sigilo de correspondência e de comunicação telemática e telefônica dos membros do Tribunal do Superior Eleitoral”.

Havia ainda a previsão da criação de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”, que teria a atribuição de comandar uma investigação para supostamente encontrar irregularidade do processo eleitoral. A comissão seria composta por 17 membros, dos quais quase a metade (oito) seriam indicados pelo Ministério da Defesa, incluindo a presidência do órgão. Os demais nove membros seriam originários do Ministério Público Federal (dois), da Polícia Federal (dois), do Senado, da Câmara dos Deputados, do Tribunal de Contas da União, da Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União.

Não é possível ter certeza de quando foi escrito o texto, mas a minuta cita que o estado de defesa estaria em vigor “durante o período que compreende o processo eleitoral até a diplomação do presidente e vice-presidente eleitos, ocorrida no dia 12.12.2022”.

O documento vai ao encontro do discurso proferido por Jair Bolsonaro ao longo dos seus quatro anos de governo. Enquanto esteve na Presidênciada República, ele deu sinais de que estaria disposto a não aceitar uma derrota na eleição. Durante o seu mandato, Bolsonaro fez reiterados ataques aos ministros do Judiciário e, sem jamais apresentar provas, por diversas vezes questionou a segurança das urnas eletrônicas, que se mostraram invioláveis desde que foram implementadas em 1996.

Investigação no Supremo

A operação em que a Polícia Federal encontrou a minuta do decreto se deu por meio do inquérito que tramita no STF. Ele foi aberto por Alexandre de Moraes para investigar a possível omissão de autoridades que deveriam ter agido para impedir as invasões ao Congresso, Palácio do Planalto e Supremo no último domingo. Até aquele dia, Torres era o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, cargo que assumiu logo após deixar o governo federal. Ele foi exonerado por conta das investidas violentas. Diante das evidências de que Torres terias e omitido de suas responsabilidades, Moraes também determinou a prisão do ex-secretário, que está passado férias nos Estados Unidos.

A PF esteve no endereço dele, num condomínio em Brasília, o mesmo onde Bolsonaro deverá morar. Os agentes saíram do local com um notebook, mídias e um pendrive, além do papel impresso com a minuta do decreto. Todo o material está sendo analisado pelos investigadores.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o estado de defesa é um instrumento legal à disposição do chefe do Executivo. Alertam, porém, que não pode ser decretado sobre um órgão do República, como o TSE, somente sobre uma determinada região ou localidade.

O professor de Direito Constitucional Georges Abboud esclarece que o presidente precisa consultar Conselho da República e Conselho da Defesa Nacional antes de lançar mão do recurso. Além disso, o texto precisa ser submetido ao Congresso em até 24 horas. Ele diz que a função de um decreto de defesa é restabelecer a estabilidade institucional em situações muito graves e particulares. Cita como exemplos casos de catástrofe natural, greves de policias ou atos de terrorismo em alguma localidade.

— A decretação não teria fundamento legal algum e só poderia ser interpretado como retórica golpista.

O jurista Luiz Fernando Pereira, coordenador geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, foi categórico:

— Não existe estado de defesa em uma instituição, isso seria uma excrescência.

Pesquisa datafolha

Um outro episódio pode gerar problemas a Bolsonaro. Um grupo de 79 integrantes do Ministério Público Federal solicitou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que peça ao STF a abertura de um inquérito para investigar uma publicação do feita pelo ex-presidente nas redes sociais já depois dos atos golpistas de domingo. Na noite de terça-feira, ele compartilhou em suas redes sociais um vídeo que questiona a vitória de Lula e ataca o Judiciário.

As investidas violentas de domingo atingiram a imagem do ex-presidente, de acordo com pesquisa divulgada pelo Datafolha. Na avaliação de 55% dos entrevistados, Bolsonaro influenciou de alguma forma os ataques em Brasília. Esse percentual reúne pessoas que veem muita responsabilidade sua nos atos (38%), e as que acreditam que ele teve pouca responsabilidade (17%). Já 39% ouvidos o eximem de qualquer de responsabilidade sobre o ocorrido.