Valor Econômico, v. 20, n. 4809, 07/08/2019. Política, p. A8

Bolsonaro edita MP que atinge mídia escrita; Congresso pode alterar norma



O presidente Jair Bolsonaro lançou mão de uma medida provisória para alterar uma lei que ele mesmo recém sancionou, a 13.818, que trata do regime simplificado de publicidade de atos societários e publicações de sociedade anônima. Bolsonaro chancelou a lei em 24 de abril deste ano. O ato provocou reações no Congresso e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que um acordo poderá ser feito.

Pela norma até ontem em vigor, originária de um projeto apresentado pelo então senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) que tramitou no Congresso durante quatro anos, as empresas poderiam publicar suas demonstrações financeiras de forma resumida, a partir de 1º de janeiro de 2022. Até lá, valia a regra estipulada pela Lei das SA, de 1976, que determina a publicação do balanço no "Diário Oficial" da unidade federativa em que estiver situada a empresa e em jornal de grande circulação nacional.

Esta exigência foi retirada pela Medida Provisória 892, publicada no "Diário Oficial da União" de ontem. Segundo o texto, as publicações obrigatórias têm que ser feitas nos sites da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), no da própria companhia e no da B3, no caso das empresas de capital aberto.

Medidas provisórias podem ser editadas pelo presidente, mas em casos de relevância e urgência. Valem por dois meses e podem ser reeditadas uma única vez. Entram em vigor de forma imediata e devem ser aprovadas por Câmara e Senado em até 120 dias. O tema é regulado pelo artigo 62 da Constituição Federal. Cabe ao Congresso avaliar previamente se os pressupostos constitucionais, entre eles o da relevância e urgência, foram atendidos.

Em pronunciamento na abertura do Congresso da Federação Nacional de Distribuição dos Veículos Automotores (Fenabrave), ontem em São Paulo, Bolsonaro ironizou dizendo que a medida vai "ajudar a imprensa de papel", porque as empresas não terão mais que publicar seus balanços. Voltou a criticar a mídia e citou expressamente o jornal Valor. "Eu espero que o Valor Econômico sobreviva à medida provisória de ontem, eu espero", disse, entre risos. "Vão fazer este tipo de política? Pensar que o Valor me entrevistou por duas vezes durante a campanha. A segunda manchete era 'Bolsonaro tem a política econômica idêntica à de Dilma Rousseff'. Pelo amor de Deus, pô. Eu não sou um Dilmo de calça comprida", disse, para arrematar da seguinte forma: 'Imprensa, eu ganhei as eleições, eu sou o Johnny Bravo. Parem de me derrubar. Vamos em frente. Vamos criticar com razão'".

O agora presidente não concedeu entrevista ao Valor durante a campanha eleitoral, embora tenha sido procurado diversas vezes. Entre 2017 e janeiro de 2018, antes, portanto, do início da campanha, Bolsonaro deu três entrevistas ao jornal e em nenhuma delas foram feitas comparações entre ele e a ex-presidente Dilma Rousseff. Na primeira das reportagens observa-se apenas que, durante o governo FHC, Bolsonaro votou da mesma forma que o PT em temas econômicos, como a reforma da Previdência. Em textos de opinião, articulistas traçaram paralelos entre Bolsonaro e Dilma em relação a episódios pontuais, como na decisão de Bolsonaro de interferir na política de preços da Petrobras para desarmar possível greve dos caminhoneiros, já neste ano.

O presidente voltou a abordar o assunto à tarde, em Itapira, onde participou da inauguração da nova planta farmoquímica oncológica do grupo Cristália. Novamente Bolsonaro foi irônico ao explicar as razões pelas quais editou a MP. Disse que durante as eleições presidenciais "quase toda mídia, o tempo todo", ficou "esculachando a gente, fascista, homofóbico, racista, e seja lá o que for". "No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou", disse.

O porta-voz da Presidência, general Otávio do Rêgo Barros, negou que o governo tenha editado a MP com o intuito de retaliar a imprensa, justificando-a pelo objetivo de reduzir custos das empresas. O mesmo argumento está na exposição de motivos que acompanha a MP, apresentada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele diz que o uso de MP, em lugar de projeto de lei, deve-se à urgência de medidas que impulsionem a retomada da economia e à pressa para que a suspensão de publicação ocorra já para os resultados das empresas de 2019.

Em nota oficial, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) disse que recebeu "com surpresa e estranhamento" a edição da MP. A entidade afirmou que o texto está "na contramão da transparência de informações exigida pela sociedade" e acrescentou estar "avaliando a melhor forma de evitar que a MP 892 seja aprovada".

A MP recebeu críticas da oposição e até de parlamentares mais próximos do governo. A maioria acusou Bolsonaro de retaliar à imprensa, com a qual vive uma relação de tensão, e disse que não há urgência que justifique a edição de uma medida provisória.

Presidente do Senado e único com prerrogativa de devolver a MP ao governo alegando que não há urgência na matéria, Davi Alcolumbre (DEM-AP) esquivou-se de dizer se tomará qualquer providência. "Não discutimos sobre isso. Vou me inteirar. Vamos estudar. Não sou consultor, vou pedir para alguém estudar. Mas vai dar tudo certo", disse o parlamentar, que está em negociação com Bolsonaro pela indicação de cargos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que não considera a melhor decisão retirar receitas dos jornais do dia para a noite. "Do ponto de vista teórico faz sentido [a MP], não haverá no futuro papel-jornal, mas esse hoje ainda é um instrumento muito importante da divulgação de informação, da garantia de liberdade de imprensa, da liberdade de expressão, da garantia da nossa democracia", pontuou.

Para Maia, Câmara e o Senado poderão construir um acordo "onde a gente olhe o futuro em que o papel-jornal de fato já não seja um instrumento relevante". "Mas, no curto prazo, é difícil imaginar, nos próximos cinco ou seis anos, que da noite para o dia vamos inviabilizar milhares de jornais que funcionam todos os dias informando a sociedade com muita competência", disse.

Para a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Simone Tebet (MDB-MS), o mérito da medida é correto, mas Bolsonaro expôs motivação manifestamente ilegal para editá-la. "No direito, existe a chamada Teoria dos Motivos Determinantes. Quando o presidente diz 'vou 'dar o troco', que é presidente e pode fazer tudo, ele vincula a MP a um motivo ilegal, que não tem a ver com o interesse público, mas com o interesse pessoal. Se for isso, a justificativa do presidente anula a MP", opinou.

Para o líder do Podemos na Câmara, José Nelto (GO), a MP busca sufocar financeiramente os jornais e terá dificuldade de ser aprovada. O representante da bancada do PDT na Câmara, André Figueiredo (CE), acusou a medida de ser uma retaliação e "altamente inoportuna". Para a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), Bolsonaro busca diminuir a transparência nos atos das empresas. A petista disse, contudo, que ainda não sabe como o partido se posicionará sobre a medida.

Líder do governo, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) defendeu a decisão presidencial, mas ponderou que o Congresso é sensível à questão. "Não acompanhei a decisão dessa MP. Que isso afeta os negócios dos veículos, certamente. Vamos analisar. Congresso sempre tem muita sensibilidade a isso".

Na opinião do líder do DEM na Câmara, Elmar Nascimento (BA), o assunto precisa ser estudado. "No mérito, a publicação dos balanços em papel vai contra os avanços da tecnologia. Mas os jornais também estão com dificuldades financeiras e cortar de uma vez é complicado, poderia se pensar num prazo para adaptação", disse. Já o líder do Cidadania, deputado Daniel Coelho (PE), afirmou que concorda com a MP.