Valor Econômico, v. 20, n. 4810, 08/08/2019. Legislação e Tributos , p. E2

Lucros ilícitos ambientais

Marcelo Kokke
Nelson Rosenvald 


 

A responsabilidade civil se movimenta continuamente em um contexto de arranjos que lidam com os desafios de propiciar respostas jurídicas que sejam eficazes em um contexto de riscos sociais e econômicos. A responsabilidade pela reparação do dano ambiental não pode ser desalinhada de fatores socioeconômicos, sob pena de cair em ineficácia ou mesmo em descrédito. Mais, não pode ser ossificada em vias estagnadas que não se predisponham a uma certa plasticidade na proteção dos bens ambientais. Nesse pano de fundo, dois problemas são simultaneamente propostos e levados a possíveis soluções.

O primeiro desses problemas está ligado aos lucros ilícitos derivados de práticas lesivas ao meio ambiente. A lógica tradicional da avaliação da reparação do dano foca na restituição do bem ao seu estado anterior. Se houve uma supressão de vegetação, por exemplo, a reparação deve ser voltada para reflorestar a área afetada. Mas uma lacuna resta aberta e pouco articulada no Brasil. Os lucros obtidos pelo infrator. Em outros termos, se o infrator obteve proveito econômico com a supressão irregular de vegetação, há alguma medida jurídica possível de ser interposta?

O segundo dos problemas consiste em uma necessária abordagem sobre o processo de gestação do dano ambiental. Legislação e jurisprudência brasileiras concentram atenção quase que exclusiva na lesão ambiental em si. Recorta-se a situação de dano ambiental, interpõe-se uma multa administrativa ou uma obrigação de reparar por via de decisão judicial. Mas não se atenta para os meandros internos que existem em corporações que possibilitaram a própria germinação de condutas ilegais. Trata-se a febre, mas ignora-se a doença.

O 'disgorgement' permite visualizar uma espécie de enriquecimento injustificado e legitimar a ação civil pública para a devolução dos lucros

Em face dessas situações estão sendo postos na prática jurídica brasileira mecanismos para propiciar respostas efetivas. O primeiro deles, relativo aos lucros ilícitos, consiste em uma abordagem integradora do ordenamento jurídico brasileiro para com práticas normativas e judiciais já em voga na Europa e nos Estados Unidos. Trata-se do "disgorgement". Os lucros obtidos por práticas ambientalmente lesivas são lucros antijurídicos, posto auferidos por via de violações legais. Permitir sua manutenção com o infrator seria propiciar que ele se enriquecesse a partir da própria lesão ambiental. O disgorgement permite visualizar uma espécie de enriquecimento injustificado e daí legitimar o ajuizamento da ação civil pública para postular a devolução dos lucros indevidamente auferidos, que são então destinados a fundos legais ambientais.

A construção jurídica propicia a recuperação social dos proveitos econômicos auferidos pelo infrator com a ilegalidade. Corrige-se a deturpação de mercado gerada pela empresa responsável pela ilegalidade, pois impede que tenha ela mais lucros do que as empresas que se conduziram legalmente. A matéria não é nova nos Estados Unidos, havendo previsão desde o Securities Exchange Act of 1934 e precedentes, tais como County of Essex v. First Union National Bank, todos transitando sobre um pilar fundamental, a ilegitimidade do ofensor manter para si o fruto de condutas ilícitas.

Em relação à avaliação do processo de gestação dos danos ambientais produzidos por empreendimentos, a engenharia jurídica abre espaço para a aplicação em processos por responsabilidade civil ambiental das matrizes já presentes na ideia de plano de integridade, constantes no Decreto 8.420/2015. A partir de ação civil pública, demanda-se que a pessoa jurídica responsável por danos ambientais adote mecanismos internos com o objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra bens ambientais. Trata-se do plano de integridade ambiental.

O plano de integridade volta-se para a inserção de mecanismos, pela própria empresa, de modo a alcançar a sustentabilidade e a condução regular das atividades econômicas, promovendo a responsabilidade ambiental em uma estruturação que efetivamente evite novas lesões ao meio ambiente. A linha de condução é favorável à função social da empresa, impedindo que posturas isoladas ou adotadas por diretores transitórios provoquem riscos para todo o empreendimento e para a própria sociedade.

Tanto o disgorgement quanto o plano de integridade ambiental se mostram como promissores para rearranjo jurídico a atender as demandas projetadas sobre o instituto da responsabilidade civil. Tramita na Justiça Federal de Belo Horizonte, nos autos de n. 1010603-35.2019.4.01.3800, ação civil pública que demanda a aplicação de ambos os mecanismos e a tendência é de ampliação de sua utilização.