Título: Da utopia
Autor: José Sarney*
Fonte: Jornal do Brasil, 30/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

É uma constante nos momentos pragmáticos que vivemos dizer que chegamos a uma época na qual todas as utopias desapareceram. Procuram vincular esse pensamento à morte das ideologias: o mundo em que vivemos não aceita mais dogmas, chegamos ao fim da História que é o desembarque no liberalismo econômico e na democracia política; os países que ainda não estão nesse caminho são desvios da marcha inexorável do progresso da humanidade.

A palavra utopia está associada a uma idéia política. É obrigação acaciana falar-se que ela vem do livro com esse título que escreveu Thomas Morus. Ele era um crítico da sociedade inglesa, suas misérias, suas injustiças, suas violências e submissão à vontade dos reis. Numa dimensão maior, com Erasmo de Roterdam, seus conceitos se estendiam a toda a Europa. Para dar uma visão clara do que pensava, idealizou uma ilha onde todas as pessoas viviam numa comunidade de bens, sem propriedade. É a primeira construção do que viria a ser o sonho socialista. Morreu decapitado, pateticamente afirmando ''sou um bom súdito do Rei, mas Deus está acima de tudo''. Mas, pensando bem, em A República, Platão põe na boca de Sócrates como os homens deviam se organizar num estado justo. A Utopia de Platão é autoritária, a de Morus é democrática.

Daí vêm a palavra, a idéia e o sonho. É a visão do impossível e por isso mesmo incendiou o pensamento do homem. Era o céu que podia ser na terra e assim jamais ser.

Há algumas décadas se escreve sobre a morte das ideologias. Mas se há uma coisa que não morre é a visão de uma existência de igualdade e de bem estar de todos os homens. A própria imortalidade é uma utopia. Não interessa que ela seja irracional, o fundamental é que ela exista.

Estas idéias me chegam quando se discute o que devia ser a política, seus costumes, seus procedimentos e fins. Há uma sensação de que o passado era um manto de pureza e ética, uma coisa assim ''como era verde o meu vale''. Cada um de nós vive de sua própria utopia que, como toda utopia, jamais será alcançada.

Marx criou a utopia do comunismo que, como tantas vezes tenho repetido, é um idéia generosa, de uma comunidade igualitária. Infelizmente ela degenerou no socialismo de estado, cujo instrumento de implantação foi o terror, a ditadura do proletariado e fez essa coisa impossível de matar as utopias.

Eu acho que o que está faltando, o que está em crise, é justamente a presença de utopias. A juventude não pode viver sem elas. Quando desaparecem, vêm as drogas, o alcoolismo, o niilismo, enfim, a busca da sublimação dos prazeres.

Toda motivação de vida das pessoas deságua no egoísmo, no consumo e na acumulação de bens materiais, a todo custo, criando a moral da lei de Gerson, ''quero levar vantagem em tudo''.

O que ocorre atualmente no Brasil são exatamente os efeitos dessa causa fundamental, do fim das utopias pessoais, que, estas sim, estão morrendo.

Então, até os árbitros de futebol se corrompem. O futebol deixou de ser, para eles, a utopia da beleza dos jogos, mas a lama da fraude nas arbitragens.

Se nem o futebol escapou, quem escapará? Sem dúvida alguma a turma do mensalão e o exemplo do mensalinho.

*O senador José Sarney (PMDB-AP) escreve às sextas-feiras nesta página.