Valor Econômico, v. 20, n. 4887, 26/11/2019. Opinião, p. A12

Subsídios, um deboche

Edvaldo Santana


Os subsídios embriagam, viciam. É emblemático um comentário da eficaz ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Quando confrontada com a possibilidade de redução das subvenções do setor elétrico para produtores rurais, argumentou que o desmame, com trocadilho, não podia ser assim tão rápido.

O setor elétrico, a propósito, é um caso alarmante. 55% da tarifa correspondem a impostos, contribuições e encargos. Paga-se mais para falsear os custos que para gerar, transmitir e distribuir. E nesse percentual anômalo não estão os R$ 30 bilhões de subsídios cruzados, como o risco hidrológico, energia de reserva e, agora, a geração distribuída. Os subsídios são uma presa fácil. Estimular uma bancada parlamentar é a estratégia padrão para criar, manter ou ampliar seu butim. Intimidar o regulador é um método também utilizado.

Na metáfora de Richard Dawkins, em “O Gene Egoísta”, o subsídio é o gene que dá as cartas, que se perpetua, que é hereditário e contamina. Da geração à transmissão e à distribuição, chegando ao consumidor, não há um só segmento que não abocanhe seu naco, seu quinhão. Há até subsídios para combustíveis fósseis e para nuclear. E eles interagem entre si, se associam, e fingem lutar para alterar o ambiente, mas, no fundo, como são egoístas, querem mesmo é promover a propagação do gene, isto é, dos subsídios. Quebrar essa sequência genética, ou desintoxicar os organismos, é tarefa muito difícil, que o diga a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

O episódio recente da geração distribuída (GD) sintetiza essa dificuldade. A virulenta reação teve como símbolo a criação do mito da taxação do Sol, uma cortina de fumaça, um corta-luz (do Sol), um deboche. A GD, como destaquei aqui no Valor em 8 de julho deste ano, transformou o setor elétrico mundial nos últimos 10 anos. Deu maior protagonismo ao consumidores, que podem usar a energia por ele mesmo gerada.

Mas os detalhes interessam. Mesmo que instale painéis fotovoltaicos no teto de sua casa, o usuário precisa da rede de distribuição, exceto se possuir baterias, dispositivos ainda muito caros. A rede é essencial para o recebimento de energia quando não há Sol e para injetar os excedentes de geração. Alguns usuários preferem construir sua usina em local distante do ponto do consumo, caso em que necessitará da rede até para consumir a energia que produziu. Em outras palavras, ele é 100% dependente da rede.

A pergunta é: esses consumidores devem pagar o uso da rede? A Aneel acha que sim, e eu também. Em 2012, quando foi aprovada a Resolução 482, era quase nulo o uso da GD, sobretudo pelos pequenos consumidores, embora já fosse dominada a tecnologia de geração pela fonte solar. Os custos eram elevados, por isto foi determinante a definição do subsídio, como foi para todas as renováveis, que pagam a rede com 50% de desconto.

Na época, votei, com ênfase, pela aprovação da matéria. E fiz questão de afirmar que, durante 7 anos como diretor, aquela era uma das normas mais importantes da Agência. Primeiro porque não dependeu de decretos ou leis, sendo iniciativa do seu corpo técnico. Segundo, pelo seu objetivo, que seguia o estado-da-arte em termos dos benefícios para o meio ambiente e introduzia o Brasil em seleto grupo de países que estavam a reduzir as tarifas por meio da GD. E terceiro porque prestigiava o consumidor, dando-lhe liberdade de escolha.

Os efeitos foram primorosos. Em outubro de 2019 o Brasil já tinha 1,4 GW de potência instalada e deve passar de 2 GW até o final do ano. É energia suficiente para o consumo do Acre e Rondônia juntos. O uso da GD tem evoluído a taxas crescentes. Em 2025, logo ali, a capacidade instalada superará 17 GW, bem mais do que existe hoje de eólicas, que devem ser ultrapassadas em 2040.

A pujança de empresários, que apostaram na minigeração distribuída, e a iniciativa das famílias, que investiram valores não desprezíveis na autoprodução, estimulados pelas subvenções tarifárias, foram determinantes, disso não tenho dúvida. A Aneel não pode desprezar esse pioneirismo, de maiores riscos e custos de quem abriu o caminho e, com o crescimento da demanda, proporcionou a trajetória virtuosa de redução dos custos dos equipamentos. Há uma proposta em consulta pública, que pode ser aprimorada.

Ocorre que os subsídios acumulados entre 2020 e 2025 serão de quase R$ 12 bilhões e chegarão a R$ 55 bilhões em 2035. Isto é quase R$ 4 bilhões/ano, ou cerca de 2,5 % de aumento de tarifas, ano após ano. Vejam que interessante: entre 2005 e 2018 o preço dos painéis fotovoltaicos caiu de € 58 para € 12/MWh, sendo de 45% a redução entre 2014 e 2018. Os últimos leilões realizados refletem esse ciclo de decréscimos de custos. A energia solar chegou a ser adquirida por menos de R$ 100/MWh, ou seja, menos de € 20/MWh, contra mais R$ 200/MWh das hidrelétricas, por exemplo.

Do outro lado, os custos da energia solar na modalidade GD, em 2018, era de cerca de R$ 330/MWh, dados os subsídios, e crescentes, o que a prejudica, pelo menos no formato atual. O somatório dos custos, no horizonte estudado pela Aneel, é bem maior que os benefícios, e é insano debochar da racionalidade econômica.

Não há outro caminho para o regulador. A Aneel não pode zombar dos subsídios, mesmo que sejam levados em conta os virtuosos benefícios da GD, como a redução de perdas, postergação de investimentos em geração e transmissão, além dos nobres efeitos para o meio ambiente e dinamismo tecnológico. Na prática, mantido o arranjo atual, apenas um subconjunto de consumidores tiraria proveito do ciclo de custos decrescentes da energia solar, só que patrocinados pelos demais, e a custos desproporcionais e crescentes, um agravante. E não falo aqui de isonomia. Reconheço que há distinção entre quem só consome e quem investiu para consumir e beneficiar o sistema como um todo.

Ao contrário do que ecoam os que defendem a perpetuação do gene, um típico deboche com quem paga os subsídios, a mudança em discussão não tem o condão de desacelerar o processo de expansão via fonte solar. Tampouco reduz os benefícios ambientais e o dinamismo tecnológico. Apenas os investimentos acontecerão na alternativa de muito menor custo, os leilões. Assim, a energia solar, afirmo, seguirá como das poucas opções para reduzir as tarifas em médio prazo, basta fazer a coisa certa.

Em 20 de novembro de 2012, no meu primeiro artigo no Valor, detalhei os erros da MP 579 e porque ela não daria certo. Todos sabem o resultado. Mantido o atual formato de subsídios à GD, o erro a ser cometido, em seus impactos sobre as tarifas, seguirá o mesmo figurino da MP, de desvirtuar os custos. É como se de uma saborosa limonada (a GD solar) fizéssemos um limão travoso, fruto de quem debocha dos subsídios.

Edvaldo Santana é ex-diretor da Aneel, prof. titular da UFSC e vice-presidente de Novos Negócios da Electra Energy