Valor Econômico, v. 20, n. 4811, 09/08/2019. Especial, p. A14 

Privatização da Eletrobras terá venda de ações

Entrevista:  Bento Albuquerque, Ministro de Minas e Energia 


O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, garantiu ao Valor que a União perderá o controle da Eletrobrás. Embora esse fosse o cenário que já vinha se desenhando nos bastidores, foi a primeira vez que Albuquerque reconheceu que a capitalização será acompanhada de perda da posição majoritária da União. O desenho da privatização, aprovado na semana passada pelo presidente Jair Bolsonaro e ainda mantido em segredo, terá sete etapas que envolvem o aval do Congresso, a liberação do Tribunal de Contas da União (TCU) e, por fim, a emissão de ações que capitalizará a estatal e diluirá o controle da União. O novo modelo deverá ser apresentado aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (MDB-AP) quando o ministro retornar de sua viagem à China, para onde foi ontem.

Ele fará conversas preparatórias à visita de Bolsonaro, "no fim de outubro ou início de novembro".

A concordância do Legislativo é uma etapa essencial, porque pelo menos duas alterações legais são necessárias para abrir o caminho para a privatização. Seguindo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional terá de dar aval para privatizar a holding, reinserindo a estatal no Programa Nacional de Desestatização (PND).

Além disso, é preciso mudar a legislação para tirar as usinas mais antigas da Eletrobras do regime de cotas, modelo instituído no governo Dilma Rousseff para reduzir as contas de luz por meio de corte na remuneração dos projetos. A "descotização" é considerada importante para recompor o caixa da empresa, atrair investidores para a capitalização e permitir que a União receba pela outorga desses novos contratos.

Em linhas gerais, a privatização será feita por meio de venda de ações, de forma que o governo federal deixará de ser o controlador. "Mas nenhuma outra empresa será majoritária", frisou. O modelo escolhido é o de "corporation". "Não vamos vender a Eletrobras. Vamos abrir o capital."

Na China, o ministro vai falar sobre a carteira de investimentos disponível no Brasil. Só nas áreas de óleo, gás e mineração são projetos que somam R$ 1,5 trilhão até 2027. A governança das concessões na área de energia e o calendário com os leilões futuros são pontos que atraem a atenção dos investidores.

Outra frente de interesse dos asiáticos é a energia nuclear. O governo pretende fechar, até o fim deste ano, as negociações com um sócio privado que concluirá a usina de Angra 3. Recentemente, recebeu executivos de um fundo russo-chinês, interessados também em novos projetos de geração nuclear.

O ministro está confiante na queda de preços da energia a partir do Novo Mercado do Gás. Ele comentou que usinas que utilizarão gás do pré-sal devem vender o megawatt-hora por R$ 85 já em 2022. Atualmente, o megawatt está saindo a R$ 550. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Qual o motivo de sua viagem à China?

Bento Albuquerque: Tenho recebido vários convites desde que eu assumi o ministério. Não só do governo chinês, mas também das empresas que têm investimentos no Brasil e daquelas que pretendem fazê-lo. A China é o principal parceiro no que diz respeito a importações e exportações. E tem investimentos no setor elétrico, no setor de óleo e gás e na mineração.

Valor: São os maiores no setor de energia?

Albuquerque: Não, mas têm investimento aqui da ordem de US$ 50 bilhões a US$ 70 bilhões. Eu acredito que, pelas oportunidades que nós temos, os investimentos chineses aqui aumentarão bastante. Recebi recentemente um fundo de investimento chinês-russo que tem muito interesse na área nuclear como um todo.

Valor: Angra 3 foi qualificada no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para ser concluída. Já está claro como isso será feito?

Albuquerque: Vai ser por uma parceria público-privada. E o projeto, por se tratar de um monopólio da União, será conduzido pela Eletronuclear. Já tem três empresas que apresentaram grande interesse nisso. Agora, estamos conversando no PPI para definir exatamente o modelo e preparar o edital para termos um parceiro definido até o fim do ano e o contrato seja concretizado no primeiro trimestre do próximo ano. Daí, as obras reiniciam.

Valor: O fundo chinês-russo está interessado em entrar em Angra 3?

Albuquerque: Está interessado, como outras empresas chinesas. A russa Rosatom está interessada nisso. A francesa Areva, os americanos da Westinghouse também manifestaram interesse em conhecer o modelo. Esse fundo está interessado naquilo que virá depois de Angra 3, as novas usinas.

Valor: O governo já mapeou as novas usinas?

Albuquerque: Estamos revendo o nosso planejamento até 2050, o Plano Nacional de Energia (PNE). Vamos dar a divulgação desse plano, que será consolidado em outubro, depois de passar por consulta pública. Em dezembro, será incluído aquilo que temos de expectativa com as novas usinas. O anterior eram 6 gigawatts (GW) de geração nuclear. Veremos se será uma usina que vai gerar esses mais de 6 gigawatts, ou mais de uma usina.

"Dados mostram que cada 10% de queda do preço da molécula de gás tem impacto de 2,1% de incremento no PIB industrial"

 

Valor: Na China, o que o sr. vai dizer aos potenciais investidores?

Albuquerque: Vou fazer uma apresentação sobre a conjuntura do setor de energia e mineração e as perspectivas para o futuro em termos de investimentos necessários para um desenvolvimento sustentável do país nos próximos dez, 20, 30 anos. Vou mostrar como é a nossa governança para que esses investimentos ocorram no Brasil, em questão de segurança jurídica e regulatória, previsibilidade dos leilões. Só no setor de energia são da ordem de R$ 1,5 trilhão, sendo o setor elétrico com quase R$ 500 bilhões e setor de óleo e gás com mais R$ 1 trilhão até 2027. Se aumentarmos o horizonte no setor de óleo e gás, esse valor vai a R$ 2 trilhões até 2030.

Valor: Isso num momento em que se avizinha o megaleilão do excedente da cessão onerosa.

Albuquerque: Tudo é interessante. Essa visita está sendo agora justamente na véspera da visita do presidente, que vai ocorrer entre o fim de outubro e início de novembro. Não deixa de ser uma visita preparatória para a visita presidencial, em termos de acordos que possam ser firmados, de cooperação, memorandos de entendimento e por aí vai. O Brasil é o país no mundo, sem nenhum ufanismo, que tem melhores oportunidades de investimento. Qual o país que tem mais de 200 milhões de habitantes, um território continental, uma diversidade de recursos minerais e de fontes de energia? Os grandes investidores estão esperando só algumas reformas. Passar no Congresso a Nova Previdência é um fato importante porque o país precisa ter uma estabilidade fiscal para que os investimentos tenham segurança.

Valor: Quando o programa Novo Mercado de Gás produzirá efeito?

Albuquerque: A abertura do mercado de gás tem impacto no insumo, mas também vai proporcionar a reindustrialização do país. Tem dados de simulações de que cada 10% de queda do preço da molécula de gás tem impacto de 2,1% de incremento no PIB industrial. Isso é uma potencialidade muito grande. Eu estive na última reunião do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico. Nós vamos ter termelétricas do pré-sal entrando em operação em 2022 com o preço do megawatt-hora de R$ 85.

Valor: Hoje está quanto?

Albuquerque: Depende. Mas já despachamos este ano termelétricas a gás natural de contratos antigos a R$ 550 o MWh. Podem dizer que é um absurdo e que alguém poderia estar metendo a mão, mas não. Naquela época, quando não tinha esse gás, era o preço. Esses R$ 550 são mais baratos que os R$ 1.500 que pagamos hoje em Roraima, em 24 horas por dia, com 80 carretas de óleo diesel fazendo o trajeto de Manaus a Boa Vista, para a geração de energia. E não estamos falando de algo que vai acontecer daqui a dez anos, mas em 2022.

Valor: Com essa energia mais barata, o Brasil fica menos dependente da energia de Itaipu e em condições mais favoráveis de negociar a revisão do acordo com o Paraguai?

Albuquerque: Sem dúvida. Assim como vamos negociar com a Bolívia o uso do Gasbol (Gasoduto Brasil-Bolívia). É importante dizer que isso não será governo a governo, mas entre empresas. Antigamente, era só com uma empresa, a Petrobras. Hoje, a Petrobras, que negocia com a Bolívia, vai dizer o preço e, depois, negociar com outras empresas.

Valor: E a situação de Itaipu do Paraguai?

Albuquerque: Com o Paraguai, nós vamos iniciar o processo de negociação no início de 2020 em relação à revisão do Anexo C do contrato binacional. Evidentemente, o preço da energia vai cair porque a hidrelétricas já estará amortizada em fevereiro de 2023.

Valor: Só essa amortização reduz a tarifa em quanto?

Albuquerque: Isso vai depender da negociação.

Valor: Tem um carta boa na mão, então.

Albuquerque: Claro. Para os dois países. O que pagam hoje pelo investimento [financiamento da usina], vão deixar de pagar. É coisa de US$ 2 bilhões, com um R$ 1 bilhão para cada lado.

Valor: Além mexer nas cláusulas econômicas, o Paraguai quer alterar, por pressões políticas, o tratado como um todo, o que não estava previsto.

Albuquerque: Olha: se teve um bom negócio, foi Itaipu. Por mais que haja críticas de um lado e de outro, ao dizerem que o Paraguai levou vantagem ou, na realidade, foi o Brasil que levou vantagem, o tratado é um exemplo de negócio bem-sucedido. Itaipu tem uma importância vital para a economia do Paraguai, no PIB do país. Do lado de cá, Itaipu teve e ainda tem uma importância muito grande para a segurança energética do Brasil. Existem assimetrias entre os dois países, mas foi, está sendo e continuará sendo um bom negócio depois de 50 anos para os dois lados.

Valor: E a privatização Eletrobras? O último movimento foi o "ok" do presidente para os estudos apresentados.

Albuquerque: Tudo foi feito com transparência. Anunciei, já no meu discurso de posse, que daríamos continuidade ao processo de capitalização da Eletrobras. Agora, seguindo qual modelo? Aí nós sentamos com a Economia, com outros atores como PPI, Advocacia-Geral da União e a própria Eletrobras. O presidente Bolsonaro aprovou e, como vocês sabem, é preciso passar pelo Congresso. O próximo passo, é procurar a presidência das Casas, tanto da Câmara como do Senado, e apresentar aquilo que foi aprovado pelo presidente para a consideração dessas lideranças. Aí pretendemos dar início a esse processo.

Valor: E qual é o melhor timing? Agora, que passou a reforma da Previdência na Câmara?

Albuquerque: Nós não podemos ficar aqui parados, esperando. A Eletrobras perdeu a capacidade de investimento. Hoje, deveria estar investindo R$ 15 bilhões, R$ 16 bilhões, por ano só para manter o status quo dela - 30% da geração de energia e 50% da transmissão. Só que ela vai investir este ano R$ 3,6 bilhões. Está-se melhorando a governança da empresa, está-se reestruturando como um todo. O que começou um ano e meio atrás tem tido resultados bastante positivos. Fizemos nosso trabalho e dissemos que, para continuar tendo a importância que sempre teve no setor elétrico brasileiro, precisamos que a Eletrobras se torne uma corporação.

"Itaipu foi importante para o Paraguai e tem importância muito grande para a segurança energética do Brasil"

Valor: Sendo uma corporação, a União perderá o controle, embora nenhum grupo privado terá participação majoritária. É isso?

Albuquerque: Não terá nenhum grupo no comando. Nós não vamos vender a Eletrobras. Vamos fazer uma abertura [pulverização] de capital em que a União deixará de ser majoritária, mas também nenhuma empresa ocupará essa posição. Será uma corporação. Estamos falando da Eletrobras, a holding, e suas principais empresas: Chesf, Eletronorte, Furnas e Eletrosul.

Valor: Quando isso será acertado com as lideranças do Congresso?

Albuquerque: Já falei com o Rodrigo Maia e estou procurando uma agenda também com o Davi Alcolumbre. Eu e o ministro Paulo Guedes iremos procurar os dois para apresentar isso formalmente. Aí vamos ver qual é o melhor caminho, se é apresentação de um projeto de lei do Executivo ou aproveitar alguma coisa que está em tramitação no Congresso.

Valor: Sem essa conversa, o governo não quer definir detalhes da privatização?

Albuquerque: Em linhas gerais, é isso. Agora, o que vai acontecer no Congresso Nacional nós não sabemos. Dentro do modelo, nós vamos ter que separar Itaipu, Eletronuclear, Cepel e as políticas públicas disso que será capitalizado.

Valor: Isso ajuda a diminuir resistências?

Albuquerque: Até por questões legais, você não pode colocar. Itaipu é um tratado internacional, que você não capitaliza nem vende. A Eletronuclear, de acordo com a Constituição, é monopólio do Estado. A Cepel funciona com uma empresa de pesquisa energética em tecnologia que é muito importante para o desenvolvimento. Temos ainda as políticas públicas que não têm como capitalizar ou transferir, que têm que ficar sob a égide do Estado, do governo. As demais empresas serão capitalizadas.

Valor: A mudança de regime de contrato das usinas da Eletrobras entra nesse pacote?

Albuquerque: Ela tem que andar junto. A descotização faz parte desse processo. Não será apenas um artigo do projeto de lei, sendo bastante genérico, autorizando a capitalização da empresa. A Eletrobras, para se capitalizar, precisa desses outros instrumentos legais que têm que ser modificados ou aperfeiçoados.

Valor: O sr. já indicou a possibilidade de elevar o pagamento de R$ 12 bilhões à União pela mudança nos contratos das usinas. Como seria?

Albuquerque: Acho que os números não devem ser tratados agora. Devemos considerar que, se você capitalizar alguma coisa que se mostra um bom negócio pelas condições operacionais, ela vai valer mais. Mas, se você vender o que operacionalmente tem dificuldades, ela vai valer menos. Então, o que queremos é aperfeiçoar ou mudar alguns instrumentos legais para que a empresa se torne mais atrativa.

Valor: Tem alguma inovação em relação ao modelo de privatização do governo Temer?

Albuquerque: A gente pensou nisso. Levamos em consideração tudo que já estava em tramitação, tudo que já tinha discutido, a experiência nesse tempo que passou, o que o próprio mercado sinaliza. Vamos submeter para a apreciação do Congresso.

Valor: Quais seriam essas mudanças?

Albuquerque: Não tem como dizer. Não é nem pelo segredo em si. É lógico que tem um segredo, porque, primeiro, ainda não apresentei isso para o presidente Rodrigo Maia e o presidente Davi Alcolumbre. Segundo, porque ainda não fechamos o texto, porque vai depender inclusive dessa conversa com eles. Temos apenas aquilo que entendemos e definimos como etapas a serem implementadas. Que passa pela descotização, até pelo [novo] período da concessão.

Valor: De fato teria que ter uma sequência, pois não daria para fazer a capitalização, com emissão de papéis, sem fazer antes a descotização.

Albuquerque: Realmente, não dá. Mas aquilo que nós formos trabalhar como projeto de lei ou como substitutivo a ser feito pelo Congresso vai contemplar tudo isso. Aquilo que pode ser feito dentro do que a legislação atual permite, já está sendo feito. Até mesmo pela Eletrobras, quando ela se desfez das distribuidoras, por exemplo. Isso já foi uma recuperação que a empresa teve no último um ano e meio até o final do ano passado.

Valor: Então, terá novidade em relação ao modelo anterior?

Albuquerque: Com certeza. Posso lhe dizer que não está igual ao projeto de lei que está em tramitação. A gente entende que vamos apresentar alguns aperfeiçoamentos. Até porque a empresa, quando foi proposto o projeto de lei, tinha uma situação diferente à de agora. Só isso já leva a alterações. Estamos sim, trazendo aperfeiçoamentos que vão tornar o debate no Congresso mais transparente, inclusive com as bancadas regionais. Tenham a certeza de que tudo foi considerado.

Valor: O sr. pode dizer ao menos quantas etapas terá o processo de privatização?

Albuquerque: Dizem que o número sete é um número de mentiroso, mas serão sete etapas. Envolvem o próprio Ministério de Minas e Energia, a Eletrobrás e o Tribunal de Contas da União. Aí, tu montas os sete do jeito que quiseres. Cada um tem sua dinâmica e seu controle sobre o que está sob sua responsabilidade, por isso é difícil falar num cronograma.