Valor Econômico, v. 20, n. 4812, 10/08/2019. Política, p. A16

STF pode julgar constitucionalidade da MP dos balanços

André Guilherme Vieira



O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), considera que "muito provavelmente" a Corte julgará a legalidade da medida provisória editada pelo presidente Jair Bolsonaro que desobriga empresas de capital aberto de publicarem demonstrações financeiras em jornais.

"Muito provavelmente isso vai ser judicializado. Porque você tem hoje, veja lá no artigo 103 [da Constituição], um amplo elenco de entes e órgãos que podem ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade. E uma das hipóteses de discussão é essa, se a medida provisória se justifica, se não há desvio de finalidade", afirma o ministro do STF em entrevista ao Valor.

A Medida Provisória nº 892 alterou a Lei 13.818, que foi aprovada pelo Congresso em 24 de abril e sancionada pelo presidente. A norma modificada por ato de Bolsonaro estabelecia que até 31 de dezembro de 2021 valeria a regra da Lei das Sociedades Anônimas, que determina publicação de balanços no "Diário Oficial do Estado" em que estiver localizada a companhia e em jornal de grande circulação nacional.

Sobre a inclinação do presidente da República para a autocracia e seu pouco apreço pela transparência, o ministro do STF afirma que é preciso distinguir questões retóricas das efetivas. "Quando essa retórica de fato ganha substância e afeta direitos, aí o caminho é o Judiciário".

Gilmar diz que o sistema de freios e contrapesos da democracia brasileira tem funcionado para modular excessos de Bolsonaro em seus sete meses de governo.

O ministro menciona como exemplos o episódio do decreto das armas e o caso em que Bolsonaro reconheceu ter cometido erro ao reeditar medida provisória para transferir a demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura - o reconhecimento do erro só ocorreu depois que o Supremo julgou, de forma unânime, que a medida foi inconstitucional.

"A questão do decreto de armas, se nós olharmos o próprio Congresso Nacional antes de o Supremo se pronunciar, o Congresso, utilizando-se do artigo 49, inciso 5º, colocou os limites. E veja que esse dispositivo foi muito raramente utilizado ao longo de 30 anos. Mas agora, como o presidente passou a utilizar fortemente os decretos com conotação legal, o Congresso passou a responder zelando pela sua própria competência."

Na opinião de Gilmar, o Supremo cumprirá seu papel ao fazer distinções "entre o simbólico e o efetivo" para conter eventuais investidas de Bolsonaro contra preceitos constitucionais e conquistas em áreas como as de direitos humanos e ambiental.

"Será preciso analisar como é que isso repercute. Por exemplo, quando uma autoridade faz um discurso homofóbico, obviamente isso deflagra ações de uma maneira ampla. É o que o STF entendeu, no caso da criminalização da homofobia." Apesar da personalidade indisposta ao debate de ideias do presidente Jair Bolsonaro, o ministro do STF ressalta que não se deve prescindir do diálogo.

"Eu acho que é preciso dialogar também. E é um início de governo, temos de dar algum crédito. Todos os governos que se iniciam, a partir de estruturas incipientes, como é o caso, porque não se tinha uma estrutura partidária forte, definida... Então esses governos vão fazendo experimentos, certos movimentos de acomodação. O que é fundamental é não comprometer a democracia, não comprometer os valores básicos dos direitos fundamentais." Para Gilmar, ainda não se pode afirmar que Bolsonaro tem a intenção de anular direitos conquistados pela sociedade.

"Eu acho que nós temos de a toda hora zelar para que isso não seja colocado em xeque. O próprio presidente já refluiu de algumas medidas. Nesse caso recente da MP, ele disse que foi um erro da assessoria técnica do Palácio e ele assumiu [o erro] pela reedição. Acho que não se pode desde logo dizer que o governo tem o propósito de nulificar direitos fundamentais ou de os agredir."

Sobre o desgaste na relação de Bolsonaro com o ministro da Justiça Sergio Moro, Gilmar afirma que a gestão do ex-juiz na Pasta " aparentemente não começou ainda".

"Eu tenho a impressão de que as dificuldades dele são evidentes. O Congresso, o Supremo, e isso tem a ver talvez com o seu passado de juiz e também com avaliações que se fazem de seus interesses políticos ou coisa do tipo". O ministro do STF sugere que Moro não tem conseguido manter uma interlocução significativa com o Legislativo.

"O fato é que no Congresso, até agora, ele não logrou aprovar as medidas que ele propôs, sem fazer juízo de avaliação a propósito das medidas. E, até agora, também não se viu nenhuma ação dele relevante na área de segurança pública. Me parece que ele está encontrando dificuldades". Gilmar atribui parcela da resistência que o Congresso tem a Moro ao escândalo das mensagens reveladas pelo site 'The Intercept Brasil".

"Se você tem de explicar mais uma conduta sua do passado do que você tem oportunidade de explicitar o seu programa, você gasta tempo só com essa defesa. Eu não sei quantos gigabytes tem o material do 'Intercept'. Mas se soubermos a gente pode avaliar quanto tempo ele vai ter de dedicar a esse tipo de explicação".

Na opinião do ministro do STF, a divulgação de conversas do coordenador da Lava-Jato de Curitiba, Deltan Dallagnol, com o então corregedor-geral do Ministério Público Federal, Hindemburgo Chateaubriand Filho evidencia uma situação de "colapso dos sistemas correcionais".

"Aquele diálogo entre o corregedor-geral do Ministério Público Federal e o Dallagnol. Aquilo revela exatamente a falta de um órgão correcional. No diálogo, inclusive, ele faz uma série de reparos e censuras à monetização que a Lava-Jato estava fazendo, via Dallagnol e outros, com palestras e tudo mais. Não obstante ele disse 'não vou, como sou seu amigo, levar isto a diante'. Então foi um colapso do sistema correcional que permitiu esse tipo de coisa. Do mesmo modo, também tinha havido falha dos órgãos de correição do Judiciário."

Para Gilmar, cabe ao Conselho Nacional do Ministério Público avaliar se os integrantes da Lava-Jato de Curitiba continuarão a exercer suas funções na força-tarefa. "Essa força-tarefa que mistura juiz e promotor é algo realmente muito peculiar. Daqui a pouco haverá juiz pleiteando salário de procurador, acúmulo de função".