Valor Econômico, v. 20, n. 4888, 27/11/2019. Opinião, p. A14

Planalto envia mais um projeto antidemocrático ao Congresso



Uma boa parte dos problemas do país pode ser resolvido com o uso da força, parece estar dizendo o tempo todo o presidente da República, Jair Bolsonaro. Filhos, a equipe do Planalto e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, estão hoje obcecados pela perspectiva de que movimentos de protesto contra o governo tomem as ruas do país. O deputado Eduardo Bolsonaro sugeriu

a volta do AI-5, que fechou o Congresso e extingiu as garantias democráticas, algum tempo após afirmar que um cabo e um soldado dariam conta do STF. Pelas declarações de integrantes do governo, protestos deixaram de ser possibilidade para tornarem-se certeza.

Não são devaneios autoritários sem consequências. O presidente anunciou que encaminhou projeto de lei prevendo o excludente de ilicitude - desrespeito à lei com imunidades - para participantes das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO): Forças Armadas, Polícia Federal, policiais civis e militares e até bombeiros. Bolsonaro insiste em ampliar o conceito para além do já definido no Código Penal e que é mais que suficiente para definir os limites nos quais os agentes da lei devem atuar: estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa e estado de necessidade.

Bolsonaro, eterno defensor das armas, quer mais liberdade para que as polícias possam usá-las sem constrangimentos legais. Seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, incluiu o dispositivo em projeto de pacote anticrime enviado ao Congresso, sem sucesso - deputados o retiraram em setembro. Nele, passam a constar do excludente outros motivos: o “escusável medo” e a “violenta emoção”, dois critérios que justificariam qualquer violência policial. Não à toa, o excludente, nesses termos, tornou-se sinônimo de “licença para matar”.

As intenções para permitir que os membros das GLO tenham essa cobertura legal são sinistras. As operações são restritas a casos como “esgotamento das tradicionais forças de segurança” e “graves perturbações da ordem”. A atuação será “episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”, segundo o artigo 15 da lei complementar 97 (1999). Um exemplo de GLO foi o uso das Forças Armadas para conter a violência e o crime organizado no Rio de Janeiro.

Pelo que dá a entender, para Bolsonaro bastaria sua vontade para que a GLO exista e ela serviria para muita coisa. No projeto de lei que enviará ao Congresso, disse que incluirá a permissão de operações do tipo para reintegração de posse em propriedades rurais. Na segunda-feira, afirmou que o excludente de ilicitude ajudaria os agentes da GLO a acabar com protestos violentos e atos de vandalismo, outras supostas finalidades para o uso do recurso extremo. Uma outra seria a “prática ou iminência da prática de terrorismo”. Pela imprecisão dos termos, pelo terreno movediço das fronteiras, Bolsonaro pretende ter o poder de usar sem limites forças policiais e militares, com direito a atirar, contra manifestações políticas de qualquer natureza. Seu caráter ilegal e antidemocrático é evidente.

Os protestos no Chile, Equador e Colômbia, parecem ter tirado o sono, e adormecido a razão, do ministro Paulo Guedes. Em entrevista, disse que “quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?... Não se assustem então se alguém pedir o AI-5”. Depois: “Acho uma insanidade chamar o povo para fazer bagunça”. O sujeito da frase estava tão oculto quanto os protestos que o ministro, sabe-se lá por que, teme.

Os fantasmas ganharam carne quando Guedes foi questionado se em alguma hipótese achava concebível a volta do AI-5. Afirmou ironicamente que era inconcebível, “mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto”. Não foi a primeira vez que Guedes mostrou a truculência usual de seu chefe. Logo após Bolsonaro ter sido eleito, em novembro, falou que era preciso “dar uma prensa no Congresso” para votar a reforma da previdência.

O primeiro ponto importante dessa paranoia, real ou motivada, é que as propensões autoritárias de Bolsonaro insistem em ganhar o aspecto da legalidade. Sua própria inabilidade e descaso para com os partidos e a resistência do Congresso impedem que seus desejos se transformem em lei e arruínem a democracia. Demonstram também o projeto de dar todas as armas - no sentido literal e figurado - para o governo enfrentar ondas de descontentamento. Policiais com licença para atirar em multidões, e cadáveres na rua, são bom pretexto para aventuras autoritárias. O Congresso deve rejeitar mais uma das peças antidemocráticas que o Planalto lhe submete.