Valor Econômico, v.20, n. 4931, 31/01/2020. Opinião p.A14

 

Uma outra perspectiva da crise no órgão de apelação da OMC


Sistema foi pensado e evoluiu privilegiando a via litigiosa para solucionar disputas

Valéria Paranhos

A Organização Mundial do Comércio, como a conhecemos nos últimos 25 anos, está em crise. Não é só o multilateralismo que está em baixa. A adequação das regras comerciais para conter o gigante chinês também está sendo questionada e nessa berlinda entrou ainda o Órgão de Apelação. No entendimento de que as atuais regras da OMC não são mais suficientes para proteger sua indústria doméstica da competitividade chinesa, os Estados Unidos encontraram naquele Órgão um bode expiatório e vêm impedindo a recomposição de seus membros, como forma de impor ampla agenda de reforma da organização.

Nos artigos sobre essa crise, no Brasil e no exterior, o que se tem visto é mais do mesmo. Por um lado, repetem-se chavões como “o Órgão de Apelação é a joia da Coroa”, os Estados Unidos, em especial Donald Trump, são os únicos culpados pela a crise e por aí vai. Por outro lado, enfatizam-se por demais soluções cujo foco continua sendo o próprio Órgão de Apelação. A proposta capitaneada pela União Europeia de criar uma segunda instância arbitral replica quase que integralmente o atual funcionamento e as regras do Órgão de Apelação. Embora a importância do Órgão de Apelação não possa ser menosprezada, é preciso refletir sobre essa crise sob uma nova perspectiva.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a atual crise é apenas o “topo do iceberg”. Existe outra crise, menos midiática, mas igualmente importante, que deve ser solucionada: o sistema de solução de controvérsias está sobrecarregado com muitos casos, cada vez mais complexos, que duram muito mais tempo, e a capacidade do sistema de responder é limitada devido a restrições orçamentárias, dificuldades na contratação e retenção de advogados e prazos curtíssimos.

A consequência é a existência de filas de casos esperando julgamento. Apesar da situação ter melhorado recentemente em razão de medidas adotadas pelo atual Diretor-Geral da OMC, o embaixador Roberto Azevêdo, a situação continua crítica e não deve melhorar.

A Organização Mundial do Comércio está mais ocupada do que nunca: o Relatório Anual de 2019 confirma que a atividade de solução de controvérsias em 2018 continuou a aumentar. Os Estados iniciaram 38 novas disputas, mais que o dobro do número de 2017 e um dos maiores totais anuais desde que a OMC foi criada em 1995. Em média, 42 processos estavam em andamento a cada mês, quase 10% a mais do que em 2017.

Em segundo lugar, é preciso ter em mente que o pilar de solução de controvérsias da OMC continuará existindo mesmo sem o Órgão de Apelação. Os procedimentos perante painéis e o Órgão de Apelação são apenas uma das vias possíveis para se dirimir um litígio comercial entre Estados. Há outros meios alternativos de solução de controvérsias, como bons ofícios, conciliação e mediação.

Mesmo quando uma disputa formal foi iniciada ainda há a possibilidade de soluções mutuamente acordadas. Ora, esses mecanismos foram usados apenas três vezes em toda a história da OMC. As soluções amigáveis, por sua vez, embora sejam uma realidade, têm sido cada vez menos frequentes. Entre 1995-2004, 67 soluções mutuamente acordadas foram notificadas. De 2005 a 2014, esse número caiu para 42 e, desde 2015, apenas 9 casos foram encerrados dessa forma.

A verdade é que o sistema de solução de controvérsias da OMC foi pensado, e evoluiu, privilegiando a via litigiosa para solucionar disputas. Os Estados têm preferido ir para uma disputa do que negociar uma solução amistosa. Do ponto de vista institucional, está entre as funções dos painéis consultar regularmente as partes na disputa e dar-lhes oportunidade adequada para chegarem uma solução mutuamente satisfatória.

Quem atua na área sabe que a realidade está longe disso. Por medo de serem acusados de parcialidade, os panelistas não exercem a contento essa função, e a obrigatoriedade de cumprir os prazos em nada ajuda. Em suma, tanto as partes quanto os painelistas e o Secretariado da OMC atuam dentro de uma “modus operandi” que privilegia a adjudicação por terceiro a outros tipos de solução.

A crise no Órgão de Apelação é uma boa oportunidade para mudar essa dinâmica. A OMC precisa encorajar a busca de soluções amistosas para as disputas comerciais. Isso pode ser feito por meio de uma série de pequenas ações ao longo dos procedimentos com vistas a incrementar o diálogo entre as partes. Apenas para citar um exemplo: as consultas são muitas vezes vistas como uma passagem obrigatória para as etapas judiciais subsequentes. Por que não incluir uma terceira pessoa na sala, que promova um diálogo efetivo entre as partes?

A OMC também poderia investir em um centro de mediação independente e autônomo. O atual sistema de mediação da Organização Mundial de Propriedade Intelectual poderia servir de inspiração. A Suíça até chegou a apresentar em 2019 uma proposta para estender a mediação a outros comitês da OMC, mas o assunto não decolou.

Por fim, e mais importante, a prevenção de disputas deveria ser uma das prioridades da Organização. Os atuais comitês da OMC são fóruns de discussão de medidas comerciais, antes mesmo delas entrarem em vigor, e onde “special trade concerns” são muitas vezes resolvidos. Mas é preciso ir além e adotar ações em diferentes áreas e níveis. As regras comerciais também precisam ser mais pensadas sob a perspectiva da prevenção.

Nesse sentido, as atuais discussões sobre facilitação de investimentos são um bom caminho. O foco está na cooperação entre Governos e investidores e, sobretudo, na prevenção de problemas. O Brasil é um dos principais formuladores e apoiadores dessa iniciativa, que tem, inclusive, servido de inspiração em outros foros como a Unctad e a própria OCDE.