Valor Econômico, v.20, n. 4931, 31/01/2020. Opinião p.A15

 

Vencendo a corrida da eletrificação


Para evitar uma mudança climática potencialmente catastrófica, a economia global com emissão zero de gases do efeito-estufa tem de ser conquistada até meados do século

Adair Turner

Não há dúvida de que, até o ano 2100, o mundo usufruirá de energia barata abundante, com emissão zero de gases do efeito-estufa. O carvão estará confinado a museus, e o uso do petróleo e do gás terá sido drasticamente reduzido. O avanço tecnológico torna esse quadro inevitável, ainda que desassistido por políticas públicas governamentais. Mas, para evitar uma mudança climática potencialmente catastrófica, a economia global com emissão zero de gases do efeito-estufa tem de ser conquistada até meados do século. Isso também é possível, mas apenas com visão estratégica e forte apoio das políticas públicas.

A energia elétrica vai dominar o futuro sistema energético global. Atualmente, ela responde por apenas 20% da demanda final por energia, com o uso direto de combustíveis fósseis ainda predominante nos transportes, no aquecimento e na indústria de base. Mas a maioria das atividades econômicas pode ser movida pela energia elétrica, e muitas delas serão muito mais eficientes quando eletrificadas.

Por exemplo, os motores de combustão interna geralmente transformam de 60% a 80% do total de energia que usam em calor desperdiçado, e apenas de 20% a 40% em energia cinética que impulsiona o veículo. Já os motores elétricos têm taxas de eficiência superiores a 90%. Além disso, eles são tão mais simples de produzir que, dentro de cinco anos, as economias de custos com motores vão neutralizar os efeitos do custo das baterias, o que tornará os veículos elétricos mais baratos que os automóveis a diesel ou a gasolina.

Embora os motores elétricos movidos a bateria devam desempenhar um papel crescente na aviação e no transporte marítimo de longa distância, as baterias serão pesadas demais para ativar voos de longa distância ou transporte marítimo intercontinental por várias décadas mais. Mas os motores das embarcações poderão queimar amônia em vez de óleo combustível - e a amônia pode ser um combustível de emissão zero de gases do efeito-estufa se for produzida por meio da eletrólise da água, com o emprego de energia elétrica gerada por fontes renováveis.

Além disso, o combustível sintético de jato pode ser produzido com o hidrogênio e o dióxido de carbono extraídos do ar. O hidrogênio, seja quando usado como combustível ou como insumo químico fundamental, também desempenhará papel destacado na descarbonização de setores da indústria de base como o siderúrgico e o de produtos químicos.

Sem pressupor qualquer revolução tecnológica basilar, poderíamos certamente montar, até 2050, uma economia mundial na qual a energia elétrica atendesse de 65% a 70% da demanda final por energia, e o hidrogênio, a amônia e o combustível sintético cobrissem outros 12% a 15%. A bioenergia e os combustíveis fósseis teriam então de responder por apenas 20% do uso total de energia - e recorrer à captura de carbono a esse uso grandemente reduzido.

O desenvolvimento dessa economia exigirá um fornecimento global anual de energia elétrica de cerca de 90 mil terawatts-hora (TWh), comparativamente aos 23 mil TWh atuais; tudo isso tem de ser gerado com emissão zero de gases do efeito-estufa. Mas essa meta, também, é, sem dúvida, alcançável. Todos os dias o Sol irradia para a Terra volume de energia suficiente para atender necessidades energéticas diárias 8 mil vezes maiores dos seres humanos, e poderíamos fornecer 90 mil TWh de energia elétrica solar usando menos que 1,5% da superfície terrestre. Os custos da energia solar caíram 85% nos últimos dez anos, e em muitos lugares a energia elétrica solar já é mais barata que a gerada por carvão; até meados do século, será mais barata ainda.

Os custos da energia eólica também caíram rapidamente, e a fusão nuclear poderá ser uma tecnologia comercialmente viável dentro de duas décadas. Os custos das baterias caíram mais de 80% desde 2010 e provavelmente voltarão a recuar mais de 50% até 2030. Além disso, uma ampla gama de outras tecnologias de armazenamento de energia e de gestão de demanda promete responder à pergunta-chave para os sistemas de energia elétrica renovável: o que fazer quando não há sol nem vento.

Esses desdobramentos tornam inevitável que até 2100 o mundo tenha uma ampla oferta de energia barata e totalmente limpa. Mas não é inevitável que vamos impedir a instauração de uma mudança climática catastrófica. O uso dos combustíveis fósseis ainda está aumentando, e o aquecimento global está em via de alcançar 3°C acima dos níveis pré-industriais até 2100, ultrapassando drasticamente a meta de bem abaixo de 2° fixada pelo Acordo de Paris. E, embora os custos da energia solar e eólica tenham despencado, precisamos aumentar a capacidade num ritmo de 3 a 4 vezes mais acelerado para ter uma probabilidade viável de produzir 90.000 TWh de energia elétrica limpa até 2050.

O custo macroeconômico de um esforço desse gênero não é intimidante: o investimento adicional total necessário para desenvolver uma economia com emissão zero até 2050 equivale a cerca de 1% a 1,5% do PIB mundial anual. Mas a aceleração necessária não vai ocorrer sem políticas governamentais vigorosas.

Essas políticas têm de começar por reconhecer que uma sólida eletrificação limpa, mais o uso de hidrogênio em grande escala, é o único caminho para a prosperidade com emissão zero. Os governos deveriam fixar metas desafiadoras para o aumento da capacidade de geração de energia elétrica renovável (e em alguns casos nuclear), usando ao mesmo tempo leilões para garantir o fornecimento pelo setor privado ao menor custo possível. As estratégias de transporte rodoviário têm de visar a completa eliminação dos motores de combustão interna das nossas estradas até, no máximo, 2050. Além disso, a fixação dos preços dos contratos de carbono é essencial para tornar econômica a descarbonização industrial. Finalmente, os governos têm de apoiar novas tecnologias com subsídios iniciais de utilização do tipo dos que ajudaram a reduzir rapidamente os custos da tecnologia solar fotovoltaica, das turbinas eólicas e das baterias.

Com políticas desse tipo, o mundo poderá desenvolver uma economia com emissão zero de gases do efeito-estufa com a rapidez suficiente para limitar a mudança climática a um grau administrável. Mas, sem as medidas corretas, essa economia chegará tarde demais.