Valor Econômico, v.20, n. 4923, 21/01/2020. Opinião p.A8
Reforma do pacto federativo e as suas Implicações
Estimativas sugerem uma queda de mais de R$ 6,5 bilhões nos dispêndios públicos em P&D entre 2013 e 2017
Daniel Gama e Colombo
Uma das medidas recentes apresentadas pelo governo como parte do ‘Plano Mais Brasil’ é a chamada Reforma do Pacto Federativo, que visa a mudar a distribuição de recursos entre os entes da federação, descentralizando verbas da União para estados e municípios. Entre as diversas questões debatidas acerca dessa reforma, um ponto ainda não abordado refere-se às potenciais implicações para os investimentos públicos em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) no país. Um estudo recém-lançado desenvolvido em parceria com o Diretor do Centro Internacional para Políticas Públicas da Universidade Estadual da Geórgia pode ajudar a esclarecer essa questão. Os resultados da pesquisa sugerem que a descentralização pretendida pode ter impactos negativos nos já enfraquecidos recursos públicos para CT&I, além de afetar a composição desses gastos, reduzindo os investimentos em pesquisa básica.
A Reforma do Pacto Federativo foi apresentada por meio da Proposta de Emenda Constitucional 188, de 2019. Entre outros temas abordados, a proposta determina que parcela dos recursos decorrentes da exploração de petróleo seja transferida a estados e municípios, assim como a arrecadação dos valores do salário-educação. A estimativa do governo é de que essa transferência possa chegar a cerca de 400 bilhões de reais em 15 anos. Na exposição de motivos da proposta, argumenta-se que a descentralização levará mais recursos à população, além de incentivar a melhoria de indicadores econômicos e sociais.
Estudos e pesquisas que trataram da descentralização fiscal levantaram argumentos e evidências de que a transferência de receitas e despesas para entes subnacionais pode afetar o volume e a composição dos gastos públicos, com efeitos significativos para áreas como educação, saúde e infraestrutura. Na esteira desse debate, nossa pesquisa (disponível em academic.oup.com /publius/advance-article-abstract/doi/10.1093/publius/ pjz033/5679927) investigou como a descentralização de recursos ou gastos pode afetar o volume e a composição dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) do setor público, a partir de dados publicados pelo Fundo Monetário Internacional.
Os resultados apontam para um potencial prejuízo para a área de CT&I: uma transferência de 10% das receitas ou despesas públicas totais (considerando todos os níveis de governo) estaria associada a uma redução de mais de 14% dos investimentos públicos em P&D. Verificou-se também que as atividades de pesquisa básica seriam as mais afetadas: a proporção de P&D do setor público dedicada a esses projetos pode ser reduzida em cerca de 9%, considerando a mesma hipótese de transferência de 10% das receitas ou despesas.
A pesquisa aponta dois fatores como os principais responsáveis por esses resultados. Em primeiro lugar, devido à natureza intangível e não-excludente do conhecimento, uma parcela expressiva dos resultados de P&D pode fluir para outros estados ou municipalidades, beneficiando empresas e organizações que não financiaram os custos dos projetos. Esse fenômeno é conhecido como ‘transbordamento de conhecimento inter-regional’, e pode reduzir os incentivos de estados e municípios investirem em P&D, levando-os a optar por uma estratégia de se aproveitar dos investimentos feitos em outras localidades. Esse mecanismo seria ainda mais forte no caso da pesquisa básica, uma vez que esta gera níveis mais elevados de transbordamentos, por se tratar via de regra de investigações mais teóricas ou com possíveis aplicações em diversas áreas ou setores econômicos.
Um segundo argumento discutido no trabalho é a competição fiscal entre entes federativos. Na busca por atrair investimentos privados, estados e municípios podem conceder incentivos fiscais diversos e reduzir sua arrecadação, com impactos negativos para os recursos e serviços públicos, incluindo aqueles dedicados à CT&I. Esse fenômeno é conhecido na literatura como ‘a corrida para baixo’. Ao descentralizar recursos federais para estados e municípios, pode-se ampliar a margem desses entes para dispor de suas receitas, gerando como consequência indesejada o acirramento da competição fiscal e a queda de recursos para financiar investimentos.
Os dados disponíveis para o caso brasileiro encontram-se em linha com as conclusões do estudo. De acordo o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o orçamento federal dedicado à P&D em 2017 foi de cerca de R$ 25,7 bilhões, o que representou cerca de um por cento da receita total realizada do governo nesse ano (aproximadamente R$ 2,56 trilhões). No caso dos governos estaduais, a grande maioria gastou um percentual menor de suas receitas totais com P&D no mesmo ano, com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Esses números sugerem que, para a maior parte dos estados, a descentralização dos recursos pode ocasionar uma redução dos percentuais de gastos dedicados a P&D.
Ressalta-se que os resultados da pesquisa não levam à conclusão de que a descentralização de recursos públicos seja inadequada, ou que não deva ser realizada conforme proposto. Na verdade, vários estudos no tema sugeriram que os efeitos da descentralização podem ser positivos para a população e para a economia, em decorrência das diferenças nas preferências e circunstâncias de cada localidade. Todavia, é importante ter em mente as possíveis implicações negativas para o sistema de CT&I, conforme descrito. Pode-se adotar medidas para mitigar ou anular os efeitos negativos, como a estruturação de um sistema de subsídios que compense estados e municípios por transbordamentos de conhecimentos, reestabelecendo os incentivos para investimentos em P&D.
Ao longo dos últimos anos, os recursos públicos dedicados à CT&I no Brasil foram reduzidos de maneira significativa. As estimativas sugerem uma queda de mais de R$ 6,5 bilhões nos dispêndios públicos em P&D entre 2013 e 2017 (dados do MCTIC). Nesse contexto, a pesquisa traz um importante alerta para que a Reforma do Pacto Federativo considere seus possíveis efeitos sobre a atividade científica, adotando providências para evitar uma queda ainda mais expressiva desses investimentos.