Valor Econômico, v.20, n. 4925, 23/01/2020. Brasil p.A8

 

Roraima vê petróleo na Guiana como redenção


País vizinho pode, até 2025, tornar-se o maior produtor da commodity per capita do mundo

Vandosn Lima

Renan Truffi

Pobre, profundamente dividida em dois grupos étnicos e com a maior taxa de suicídios do planeta, a Guiana está às vésperas de viver uma explosão de crescimento jamais vista. A descoberta de imensas reservas de petróleo em alto-mar, cuja produção poderá alcançar até 6 bilhões de barris, fará o PIB da Guiana, único país da América do Sul a ter o inglês como língua oficial, saltar 86% já em 2020. Na vizinha Roraima, o acontecimento é visto como uma oportunidade única de grandes negócios, o que tem levado parlamentares do Estado, aliados do presidente Jair Bolsonaro, a pressionar o governo por obras que liguem as duas regiões.

“Eles serão a nova Doha”, entusiasma-se o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), em referência à capital do Qatar e um dos importantes centros financeiros do Oriente Médio. Para ele, estreitar as relações com a Guiana pode ser a redenção para Roraima, especialmente afetada pela imigração recente de venezuelanos - outro país com o qual o Estado faz fronteira.

O passo estratégico para esta integração é a pavimentação de 320 km da estrada Lethem-Lindem, no território guianense, a cargo do Brasil, que completaria o asfaltamento entre Georgetown e Boa Vista, pela BR-401, e Manaus, pela BR-174. A estrada constituiria a ligação asfaltada mais curta entre essas duas capitais estaduais e o Oceano Atlântico (1.345 km de Manaus e 682 km de Boa Vista), facilitando o acesso da produção brasileira ao Caribe e ao mercado guianense.

“[Com essa obra], você economiza 2,5 mil km entre a Amazônia e o canal do Panamá. Eu provoquei os chineses e disse para eles: por que vocês não pensam em construir uma ferrovia de Georgetown para Boa Vista? São 750 km. Nessa região estão os minerais mais estratégicos que eles precisam”, relata o senador ao Valor.

O governo brasileiro, contudo, não tem dado mostras de que vê a ligação com a Guiana como prioridade. Rodrigues conta que tratou da questão diretamente com o ministro Tarcísio Freitas, mas não recebeu uma resposta positiva. “O Freitas é contra agora. Ele concorda que o projeto é importante, mas diz  que, primeiro, temos que mexer aqui dentro [do Brasil]. Eu disse a ele: ‘Enquanto você mexe aqui dentro, você deixa os outros crescerem lá fora’.”

Representante dos interesses da Zona Franca de Manaus no Congresso, o líder do MDB no Senado, Eduardo Braga, vê outro problema: como a política externa dos governos do PT apostou justamente na integração com países latino americanos para alavancar o desenvolvimento da região, o governo Bolsonaro evita empreendimentos parecidos para não ser alvo de comparações. “Uma boa ideia acaba sendo contaminada por outras coisas”, lamenta.

Gestor da Superintendência da Zona Franca (Suframa), o coronel Alfredo Menezes rechaça a crítica. Desde que assumiu o cargo, ele diz que já se encontrou por três vezes com o embaixador da Guiana, mas que a proximidade da eleição presidencial no país vizinho, em março, estacionou as negociações. “Dinheiro vai ter para priorizar o projeto. Faltam as costuras políticas necessárias.”

Embaixador da Guiana no Brasil, George Wilfred Talbot diz que a Guiana quer o Brasil como parceiro. “É uma relação com grande potencial, mas ainda longe de ser totalmente explorada. Eu gostaria que o Brasil visse a Guiana como uma oportunidade”, diz. Uma ligação Boa Vista-Georgetown, avalia, seria benéfica aos dois países: ofereceria ao Brasil acesso para escoamento de produtos do agronegócio rumo a Estados Unidos e Europa; e à Guiana, muito dependente da importação, uma via para recebimento de produtos, dentro da perspectiva de melhora do poder aquisitivo da população nos próximos anos. “Vai tornar a Guiana mais acessível e, ao mesmo tempo, a Guiana pode ser o caminho mais curto para Estados da região Norte do Brasil acessarem o Atlântico.”

Apesar da grande necessidade de mão de obra qualificada para o setor - o país não tem qualquer histórico de produção de petróleo -, a Guiana descarta a possibilidade de uma parceria com a Venezuela. Os dois países têm uma disputa centenária pela região do Essequibo, que engloba dois terços do território da Guiana. Foi justamente no subsolo marinho local que o petróleo foi descoberto. O Essequibo também tem jazidas de ouro e minérios.

A Guiana, que compartilha 1.605 km de fronteira com o Brasil, ainda tem 80% de seu território cobertos por floresta tropical. Os 777 mil habitantes vivem majoritariamente na capital, Georgetown, e arredores. O PIB, de US$ 3,6 bilhões, é similar ao de Roraima, Estado mais pobre do Brasil.

É neste contexto que esta antiga colônia britânica vai vivenciar, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), um crescimento proporcional 14 vezes maior do que a economia chinesa neste ano. A ExxonMobil, responsável pela exploração, prevê que até 2025 a produção chegará a 750 mil barris de petróleo por dia no local. Com uma população tão pequena, a expectativa é que a Guiana se torne o maior produtor de petróleo per capita do mundo.

Tudo somado, poderia se imaginar que um futuro de riqueza e prosperidade é questão de tempo para os guianenses. A história, contudo, mostra que não é bem assim. A chamada “maldição do petróleo” tem sido uma constante entre países que, ao se depararem com uma extraordinária fonte de recursos naturais, não conseguem convertê-la em uma sociedade economicamente estável e justa, vendo os recursos ruírem por má gestão e corrupção - Angola e Timor Leste são exemplos recentes.

Talbot diz que a Guiana está ciente e, para evitar a repetição da maldição, criou um fundo soberano para administrar os recursos do petróleo. “Sabemos que é uma janela de oportunidade. Acesso é um desafio na Guiana. Acesso à educação é a prioridade, bem como serviços de saúde, serviços como passaporte.” Os problemas são muitos. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou que 44,2 em cada 100 mil pessoas se matam na Guiana; jovens são as principais vítimas e os motivos são variados, desde as poucas perspectivas até o fato de que a homossexualidade ainda é crime do país.

Uma parte do dinheiro, afirma, também será utilizada em infraestrutura, com vistas a melhorar a mineração de ouro e pedras preciosas no interior do país. “Elas ainda são vendidas em estado bruto. A infraestrutura de estradas e aeroportos será essencial, assim como é preciso agregar valor, investindo no nosso pessoal para produzir joias.”

Outro desafio é o cenário político local. As próximas eleições ocorrerão em março. Em audiência na Comissão de Relações Exteriores (CRE) do Senado, em setembro, a atual embaixadora brasileira na Guiana, Maria Clara Duclos, lembrou que a antiga política migratória inglesa privilegiou a vinda de colonos da Índia em substituição à entrada de escravos africanos, o que dividiu a população do país: 45% de ascendência indiana contra 30% de ascendência africana. “Isso tem provocado até hoje conflitos entre as duas partes e é fator preponderante na organização política do país”, apontou.

As forças políticas refletem essa situação: o PPP (People’s Progressive Party), apoiado pela comunidade indiana, passou a ser oposição em 2015, depois de 23 anos no poder; o PNC (People’s National Congress), apoiado pela comunidade africana, elegeu o atual presidente, David Granger, que deverá ser candidato à reeleição.

Diferentemente de países, como o Brasil, na Guiana não há período de transição entre um governo e outro. Quem ganha no dia seguinte já assume a gestão. Com interesses do Brasil em jogo, Rodrigues diz que uma comitiva de parlamentares brasileiros vai ao país acompanhar o processo eleitoral.