Título: Dia de responsabilidade
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Fonte: Jornal do Brasil, 28/09/2005, Opinião, p. A10
A partir das 10 horas de hoje, quando a eleição para a presidência da Câmara começar, os deputados federais terão a oportunidade de revelar ao país o que aprenderam sobre o maior desastre político da atual legislatura - a condução de Severino Cavalcanti ao terceiro posto mais importante da República, símbolo de um Congresso esfacelado moralmente pela malandrice, paralisia e ineficiência. Ainda nas mãos dos parlamentares, a chance de refutar as evidências e esquecer os maus presságios que até aqui cercaram a disputa para o comando da Casa. São inúmeros, afinal, os espantosos exemplos da degeneração ética que conduzem a escolha de hoje à repetição de velhos equívocos, já testados e reprovados. Por um lado, o Palácio do Planalto decidiu liberar, a poucos dias da eleição, cerca de R$ 500 milhões em verbas incluídas pelos congressistas no Orçamento da União - as chamadas emendas parlamentares individuais. Foi uma clara tentativa de cooptar apoios para Aldo Rebelo (PCdoB), o governista cuja candidatura vem dando explícitos sinais de fragilidade.
O baixo nível da disputa repetiu-se na atitude de Ciro Nogueira (PP), o herdeiro político de Severino que descumpriu o acordo firmado entre os candidatos para baratear a campanha e contratou dezenas de modelos para desfilarem com camisetas pelos corredores da Câmara. Somam-se ainda duas mostras do vale-tudo da reta final: o restrito debate sobre o papel que caberá ao Parlamento nos próximos meses e as manobras regimentais promovidas por governistas e oposição para votar apressadamente reformas eleitorais que beneficiam especialmente o ''baixo clero'' - a maioria silenciosa e fisiológica que se tornará o fiel da balança na disputa.
A situação anômala desta eleição, balizada pelas práticas mais ilegítimas, entre as quais a oferta do Planalto de cargos e verbas, macula uma oportunidade histórica: escolher um nome simultaneamente independente do governo, com livre trânsito entre as bancadas e, acima de tudo, honesto; que não ameace revelar-se um engavetador de processos, tampouco possa tornar-se um instrumento de radicalização das disputas partidárias que inevitavelmente abalarão os trabalhos da Câmara em 2006; que leve o Legislativo a trilhas desejáveis da solução para uma crise sem precedentes; que revele condições de equilíbrio e experiência para a tarefa de melhorar o conceito público da Câmara.
A inquietação atual, estimulada pelos maus ventos das negociações em curso, é se a recuperação da imagem do Parlamento importa realmente para os deputados. Os sintomas sugerem que tal preocupação se restringe a uma minoria do Congresso. O resultado é que as contas no varejo, a inevitável imprevisibilidade do resultado de hoje e o quadro político que regrediu aos piores momentos do Congresso apontam para uma possibilidade concreta: o retorno do espírito severino à presidência da Câmara. Contribui para isso a operação explícita do Palácio do Planalto, com o empenho pessoal do presidente da República, num jogo particular a outro poder.
Embora não seja largo o campo de manobras possíveis do futuro presidente da Câmara, e apesar da ausência de grandes projetos do governo Lula a tramitar entre as dissensões partidárias, a eleição de hoje ajudará a definir os contornos do país até o fim da administração petista. Convém torcer para que atos de irresponsabilidade não se repitam. Os conflitos passados conduzem as incertezas do futuro. Mas é hora de os deputados voltarem a pensar no país.