Título: Aids, coquetel e desigualdade social
Autor: Ciro Mortella*
Fonte: Jornal do Brasil, 28/09/2005, Outras Opiniões, p. A11

Em recente encontro realizado em Curitiba, organizações não-governamentais voltaram a exigir o licenciamento compulsório das patentes dos medicamentos do coquetel antiaids.

Infelizmente, a questão extrapolou os limites financeiros que lhe dão fundamento, a saber, a tentativa de reduzir os preços dos medicamentos, tendo em vista que as verbas públicas não seriam suficientes para a atender o número crescente de pacientes, para se transformar numa campanha de desinformação, com o objetivo de desacreditar a indústria farmacêutica.

É uma pena que um tema de tamanha gravidade seja abordado de forma inconseqüente.

Os partidários do desrespeito à propriedade intelectual argumentam que os medicamentos são muito caros e países como o Brasil não têm condições financeiras de pagar seu preço. De fato, produtos cuja pesquisa e desenvolvimento (P&D) custa em média US$ 900 milhões são caros. E os altos investimentos feitos para criá-los precisam ser cobertos, como impõe a lógica econômica. E o são. Pelos mercados dos países ricos.

O consumidor e o governo brasileiros já pagam pelos medicamentos que adquirem um preço subsidiado pelos consumidores norte-americanos, europeus e japoneses.

Por conveniência, os partidários da quebra de patentes costumam incluir o Brasil no rol dos países pobres. O Brasil é, na verdade, a 12ª economia mundial. Mas não paga pelas drogas do coquetel antiaids um preço equivalente a essa posição. Paga, proporcionalmente, muito menos.

Já países reconhecidamente pobres, como a maioria dos países africanos, não pagam nada ou muito pouco pelos medicamentos contra a aids, por exemplo.

O que acontece é que a ajuda humanitária para a África, que inclui a doação de medicamentos em grandes quantidades, é desviada pelos burocratas e pelas redes de corrupção, segundo a análise do insuspeito economista africano James Shikwati, do Quênia, em entrevista à revista alemã Der Spiegel.

O problema do acesso aos medicamentos no Brasil não está centrado no preço, mas na renda. E não há nenhuma novidade nisso. Um relatório da ONU que acaba de ser divulgado mostra que o Brasil ocupa a 8ª posição no ranking da desigualdade social. A má distribuição de renda e políticas públicas precárias restringem o acesso da população a bens essenciais, como os medicamentos.

As drogas contra a aids desenvolvidas pela indústria farmacêutica ao longo de duas décadas deram novo alento aos portadores da doença. As substâncias descobertas transformaram a enfermidade, inicialmente fulminante e devastadora, num mal que pode ser controlado, embora ainda incurável, aumentado a qualidade e a expectativa de vida de seus portadores.

E há quem diga que o sucesso do programa brasileiro de distribuição universal de medicamentos para combater a aids se deve exclusivamente à iniciativa do governo e não à indústria farmacêutica. Ora, de nada valeria a estratégia de negociar com os laboratórios a redução de preços das drogas do coquetel antiaids ou fabricar localmente os produtos com patente expirada sem a disposição e a ousadia dos laboratórios de mobilizar bilhões de dólares na descoberta de substâncias capazes de reduzir a mortalidade provocada pela doença.

Sem a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos inovadores contra a aids o programa público de tratamento dos portadores da aids simplesmente não existiria.

Por mais absurdo que possa parecer, defensores da quebra de patentes chegam a afirmar sandices do tipo: ''A simples existência de medicamentos antiaids não garante a vida''. Os medicamentos garantem, sim, a vida de um contingente cada vez maior de brasileiros.

O sucesso do programa brasileiro de acesso universal ao coquetel antiaids é o sucesso da indústria farmacêutica, tanto no plano científico como comercial. Os dados do próprio governo ilustram esta afirmativa.

Em 1997, 35,9 mil portadores da doença foram atendidos, com o dispêndio per capita de US$ 6.240. No ano passado, o grupo beneficiado chegou a 154 mil pessoas, com gastos por paciente de US$ 2.500. Em 2003, o custo médio por pessoa foi ainda menor: US$ 1.359.

Que os responsáveis pelo programa brasileiro de combate à aids queiram otimizar os recursos disponíveis é compreensível e até legítimo. Os laboratórios têm jogado este jogo, negociando condições mais favoráveis, como demonstram os números acima citados.

O que não se pode aceitar é que em nome desse objetivo os laboratórios sejam tratados como vilões de um programa que é aplaudido em todo o mundo graças, fundamentalmente, ao conhecimento e aos vultosos investimentos da indústria farmacêutica.

O setor reafirma seu compromisso de contribuir para a ampliação do acesso aos medicamentos para os medicamentos em geral e não apenas do coquetel antiaids. Só apresenta uma condição. Que tudo seja feito dentro da lei, respeitados os acordos internacionais firmados pelo Brasil.

*Ciro Mortella é presidente executivo da Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma).