Valor Econômico, v. 20, n. 4849, 02/10/2019. Opinião, p. A14

Modulação do STF deve preservar a Lava-Jato



Os procedimentos e as ações pioneiras da Operação Lava-Jato estão sendo colocados em xeque um a um e, surpreendentemente, não por artimanhas de advogados milionários de réus endinheirados, mas pelo Supremo Tribunal Federal. O tom dramático do último capítulo, com a declaração homicida do ex-procurador geral, Rodrigo Janot, apenas ampliou a já elevada mania persecutória que acometeu o STF. Janot deu apoio quase irrestrito à força-tarefa de Curitiba e ao então juiz Sergio Moro, e suas afirmações colocam em dúvida a imparcialidade e a justeza de seu trabalho ao longo de 4 anos. É possível, no entanto, encontrar um desfecho racional, não apocalíptico, que preserve o legado positivo da

Lava-Jato e ignore a atmosfera carregada de conflitos que cerca a PGR, o STF e o ministro da Justiça, Sergio Moro.

Os fios desencapados das leis brasileiras produzem desenlaces surpreendentes, um atrás do outro. O caso mais recente, que pode ter uma solução hoje, é a decisão do Supremo de que réus delatados têm de apresentar depois dos delatores suas alegações finais. Foi uma lacuna deixada pela lei da delação premiada, de 2013, omissa a respeito. Após anos de julgamentos e recursos, sem que ninguém se desse conta da omissão, a defesa do ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, recorreu com sucesso à Segunda Turma do STF, apontando cerceamento ao amplo direito de defesa pelo fato de as alegações finais terem sido simultâneas, como determinou Moro.

É provável que o recurso de Bendine não fosse bem-sucedido se a aura da Lava-Jato se mantivesse intacta. Mas começou a ser arranhada pelo exibicionismo dos procuradores e pelo ingresso de Sergio Moro no governo de Jair Bolsonaro, alguns meses após mandar para a cadeia Lula, o mais bem colocado rival eleitoral de Bolsonaro.

Decisivo para turvar a imagem da Lava-Jato foram as divulgações pelo The Intercept dos diálogos dos procuradores, gravações ilegais que, no entanto, não foram desmentidas por nenhum dos envolvidos. Saíram feridos a imparcialidade de Moro, o cumprimento de alguns preceitos legais e, o mais grave para o destino da operação, a busca de procuradores por malfeitos de juízes do Supremo - Gilmar Mendes e Dias Toffoli. A atitude do tribunal veio mudando significativamente a partir daí.

Passou-se a examinar então com lupa a fenomenologia das leis, algo exasperante no caso brasileiro. Ao examinar o recurso do ex-gerente da Petrobras Márcio de Almeida Ferreira, com argumentos semelhantes aos de Bendine, o STF supriu a lacuna da lei de 2013 estabelecendo uma ordem que não havia. Hoje deve começar a discutir critérios para restringir a decisão, sua modulação. Os resultados não necessariamente prejudicarão a Lava-Jato. Uma das alternativas em exame é a de enviar de volta ao estágio das alegações finais processos nos quais a defesa tenha apontado, na primeira instância, a irregularidade. Podem não ser muitos. Outra é o exame caso a caso dos processos par que se verifique se houve ou não prejuízo ao réu no estágio das alegações finais - em que não há mais produção de provas.

Nenhuma das hipóteses contempla a anulação de toda a denúncia, mas seu retorno ao estágio questionado, o que possivelmente não mudará o veredito na maior parte dos casos. O ministro Sergio Moro alertou para a perscrição de prazos, algo que o STF pode definir. A decisão do STF, porém, indica uma fase em que a Corte terá como atitude norteadora a desconfiança e a vigilância sobre o cumprimento da legislação na apreciação de recursos de réus da Lava-Jato.

Se o STF julga corrigir agora desvios legais da Lava-Jato que vêm do passado, a decisão monocrática do presidente Dias Toffoli exigindo a aprovação de um juiz para acesso aos dados completos coletados pelo Coaf (hoje Unidade de Inteligência Financeira) afeta o futuro de todas as operações que visam combater corrupção e outros crimes. Toffoli atendeu a pedido do advogado do senador Flavio Bolsonaro, envolvido em investigações sobre “rachadinhas” na Assembleia do Rio e possível ligação com milícias.

Toffoli suspendeu investigações sobre o filho do presidente da República e todas as demais na mesma situação - são muitas. E marcou uma avaliação do plenário só em novembro, como se ela não fosse urgente. O STF, assim, ao mesmo tempo em que manda retroceder o julgamento de réus da Lava-Jato, impede que um instrumento vital para investigações seja usado tempestivamente. Maior celeridade e empenho por colegialidade nas decisões ajudariam a eliminar a balbúrdia política causada por suas decisões.