Título: Duas décadas de transição
Autor: Flávio Leão Pinheiro
Fonte: Jornal do Brasil, 02/10/2005, Internacional, p. A9

Pesquisador do Observatório Político Sul Americano (OPSA), do Iuperj

Quando o socialista, Ricardo Lagos, assumiu a presidência, em março de 2000, nem o mais otimista dos analistas poderia dar conta da dimensão que seu governo tomaria na história do intrincado processo de transição democrática chileno. O pessimismo de então resultava, sobretudo, do clima desfavorável no período em que Lagos chegava ao La Moneda: desgaste político da Concertación, com considerável perda de poder no Parlamento, e economia em recessão. Nada obstante, o governo socialista conseguiu dar cabo de duas questões que ainda marcavam as instituições e a política com os traços autoritários do regime do general Augusto Pinochet (1973-1990). A primeira era o julgamento dos militares por crimes de Estado durante a ditadura. A segunda, a eliminação dos entraves institucionais autoritários presentes na Constituição. Os dois processos se complementam e são interdependentes, e seus avanços representam o amadurecimento da sociedade chilena, sendo impossível tratá-los de forma separada.

A batalha para processar os responsáveis pelas quase 3 mil mortes no regime autoritário começou no primeiro governo da Concertación, com o presidente Patricio Aylwin (1990-1994). À época, sem dúvida, o maior empecilho foi o poder ainda com os militares após a saída de Pinochet. Diferente do ocorrido nas demais ditaduras do Cone Sul, os chilenos deixaram La Moneda com alto poder de barganha política, especialmente em razão do legado econômico. Além do mais, a lei de anistia, promulgada às vésperas da abertura, concedeu segurança jurídica aos envolvidos na repressão entre 1973 e 1978, os anos mais violentos da Era Pinochet.

A primeira iniciativa do governo Aylwin para se rever os crimes da ditadura foi a criação da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, sob a tutela do jurista Raúl Rettig. O resultado foi divulgado em relatório em 1991, responsabilizando os militares por mais de 2 mil mortes. A resposta foi imediata: ¿As Forças Armadas chilenas não vêem razão para pedir perdão diante do que foi feito em sua missão patriótica¿, contestavam os militares em declaração oficial.

Passados 20 anos, a discussão sobre a responsabilidade das Forças Armadas continua um tema sensível. Desde o boinazo, em 1993, e das prisões de figuras-chaves como o general Manuel Contreras, ao impasse de Pinochet na Inglaterra, seguido dos processos sobre a Caravana da Morte, a Operação Condor, e o mais recente, o Caso Riggs, a sociedade chilena mudou. Portanto, debater a ligação de militares em crimes de repressão, apesar da resistência em certos setores, já não é tabu como nos anos 90.

O desfecho da luta em prol dos direitos humanos ainda não ocorreu, mas, ao final de 2004, as conclusões de outra instância foram um divisor de águas. O informe da Comissão sobre Prisão Política e Tortura (Informe Valech), foi iniciativa direta de Lagos que, em 2003, patrocinou a sua criação. Mais de 35 mil pessoas foram entrevistadas para ditar o veredicto que todos já sabiam: houve torturas e assassinados na era Pinochet. Diante das evidências do relatório, o governo decidiu indenizar as vítimas. Mais relevante, no entanto, foi o reconhecimento, por parte do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, de que houve crimes cometidos pelo Estado.

As iniciativas da Comissão Rettig e do Informe Valech, somadas aos processos contra Pinochet e outras autoridades, são emblemáticas porque representam a perda de força política de setores conservadores, abrindo caminho não só para uma nova fase na revisão dos crimes do regime, mas para o aprofundamento do processo democrático. O desenlace, no entanto, dependeu da supressão dos traços autoritários nas instituições políticas. Nesse sentido, a recente promulgação da reforma constitucional pelo presidente vai além da simples mudança institucional. Foi um marco na transição à democracia, pondo fim aos enclaves autoritários da carta elaborada em 1980 para legitimar o regime de Pinochet. Tentativas de alterações já haviam sido empreendidas, mas sem muito sucesso.

Às vésperas do fim do regime, entre 1988 e 1989, uma primeira reforma foi feita. Neste período, houve uma série de negociações entre a oposição e os militares que saíam. Apesar de restar claro que a democracia protegida institucionalizada pela carta de 1980 seria, de uma vez por todas, extinta, as forças conservadoras (militares e União Democrática Independente, UDI) ¿ prevendo uma derrota para a coalizão oposicionista, a Concertación ¿ pretendiam estender sua influência para além do regime autoritário. A idéia era manter uma autonomia militar dentro do governo civil. Para tanto, as propostas nas discussões das reformas pré-abertura política visavam a manter o Executivo fraco diante das Forças Armadas e o Legislativo avesso ao pluralismo político. A despeito de a oposição discordar, não houve alternativa. Em face da instabilidade natural da transição de um regime fechado para uma democracia, as opções eram aceitar ou comprometer o processo.

Só mesmo as mudanças no cenário político do governo Lagos poderiam viabilizar reformas mais profundas. A perda de popularidade de Pinochet permitiu que as propostas de mudar o texto constitucional ganhassem peso diferenciado nas disputas domésticas. Assim, setores políticos ligados ao ex-ditador e que participaram ativamente do governo militar, em especial a UDI, optaram por se desvincular da imagem do regime.

Nesse contexto, iniciou-se a negociação para apresentar ao Chile uma carta mais democrática. As conversas entre a Concertación e Alianza começaram no Senado, em 2004, tendo como figura-chave o então ministro do Interior, agora secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza. O debate durou quase um ano, quando finalmente, em setembro 2005, na semana da independência, Lagos pôde promulgar as mudanças.

O texto sofreu 58 emendas. A destacar: a inserção de competência para o presidente destituir e nomear o comandante-em-chefe das Forças Armadas e o diretor geral dos Carabineros (polícia); a extinção do senador vitalício ¿ hoje, 9 membros da casa estão nesta condição, dentre eles, 5 militares; a redução das competências do Conselho de Segurança Nacional e sua subordinação direta ao presidente; e a retirada do sistema eleitoral binominal da carta. Além do mais, a reforma eliminou as disposições transitórias impostas pelo regime e tirou a assinatura de Pinochet do texto oficial, que agora tem apenas 19 artigos inalterados. Definitivamente, os enclaves autoritários foram expurgados.

Duas questões, no entanto, ainda seguem no centro do debate. A primeira continua sendo o não reconhecimento dos povos indígenas, ponto não aceito pela UDI. Outro, é a indefinição em relação ao sistema eleitoral. O modelo atual é o binominal, considerado excludente, fato que, de certa forma, explica a formação das duas coligações que dominam a política. Grande avanço foi feito com a retirada desse dispositivo da ordem constitucional, mas ainda não resta claro se o sistema proporcional, defendido pela Concertación, será implementado no curto prazo.

Em suma, tanto os julgamentos dos crimes de Estado no regime autoritário, como as reformas constitucionais que baniram os enclaves autoritários das instituições políticas, denotam que o Chile, após 20 anos, conseguiu concluir o processo de transição democrática. Foi um árduo percurso, já superado. Espera-se que o exemplo, especialmente quanto à revisão dos crimes políticos, sirva de inspiração para os governos democráticos de Argentina, Brasil e Uruguai, países que, tal qual o Chile, sofreram com a repressão militar nos anos 70 e 80.