Título: Sheila Machado
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 02/10/2005, Internacional, p. A11
A província de Buenos Aires é palco do que a imprensa argentina batizou de ''a mãe de todas as batalhas'': a disputa eleitoral para o Senado entre Cristina Fernández de Kirchner, mulher do presidente Néstor Kirchner, e Hilda ''Chiche'' de Duhalde, esposa do ex-presidente (2002-2003), ex-aliado e agora desafeto político do líder da nação, Eduardo Duhalde. Em clima de pré-campanha presidencial - o pleito está marcado para 2007 -, a escolha a ser feita pelo eleitorado reflete a preferência também pelos maridos, afirmam analistas.
A eleição legislativa acontece em 23 de outubro e vai renovar metade das 257 cadeiras da Câmara dos Deputados e um terço das 72 vagas do Senado, onde a maioria é do Partido Justicialista (PJ, peronista), ao qual pertencem os Kirchner e os Duhalde.
Mesmo sem incluir a capital - que é um distrito separado - a província bonarense é o maior colégio eleitoral da Argentina: concentra 40% da população e do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Segundo a mais recente pesquisa de opinião, do Instituto CEOP, a vantagem está com a já senadora Cristina, que teria 40,1% dos votos, contra 16,9% de Hilda. O candidato de centro-direita Ricardo López Murphy aparece em terceiro, muito longe das duas, com 7,3% das intenções.
- A polarização entre estas mulheres reflete não só a rivalidade entre Kirchner e Duhalde, mas também a conjuntura política do Partido Justicialista (peronismo). A legenda está profundamente dividida - explica ao JB o cientista político argentino Martín D'Alessandro.
Duhalde foi o mentor de Kirchner, a quem apoiou para sucedê-lo na Casa Rosada, em 2003. Mas logo depois eles tomaram caminhos diferentes e é esta posição que defendem, junto com as esposas, agora:
- Duhalde é o justicialista tradicional, inspirado no populismo de Juan Domingo Perón, que tem apoio das massas, do movimento sindical, que acredita na industrialização interna em substituição da exportação. Kirchner é novidade na tradição política argentina: supõe uma concentração de poder pessoal, baseado em sua alta popularidade, fruto da negociação digna com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e das ações pelos direitos humanos, dando aval a julgamento de líderes da ditadura (1976-1983) - afirma D'Alessandro.
Sem contar com o setor liderado por Carlos Menem, também ex-presidente, que nos anos 90 promoveu o projeto neoliberal na Argentina, abrindo o país ao comércio internacional, com uma aliança privilegiada e ''incondicional'' com os Estados Unidos, como lembra o cientista político.
O fato é que na Argentina de Eva Perón política e casamento andam juntos. Cristina entrou no PJ ainda jovem e já era senadora quando o marido ainda ocupava o governo da província de Santa Cruz, na distante Patagônia. Chiche, por sua vez, recebeu a herança peronista de Duhalde, que em 1997 decidiu que de dona-de-casa ela se transformaria em deputada. Na presidência, fez da mulher a encarregada do Plano de Assistência Social, que em 2002 tinha a missão de dar de comer a milhares de famintos, vítimas do colapso econômico provocado pelo câmbio forçado que ditava que 1 peso era igual a US$ 1.
De acordo com D'Alessandro, Cristina concentra uma parcela mais elitizada do eleitorado. É combativa, fala bem às multidões e tem uma imagem altiva: está sempre bem-vestida, penteada, é magra. Hilda é carismática e atrai a classe média argentina, não esconde o orgulho de ter sido dona-de-casa.
- Ainda que tenham se projetado nos palanques por meio dos maridos, hoje têm valor e identidade próprios - acredita Rosendo Fraga, diretor do grupo de análise Nueva Mayoría. - A luta não terminará nestas eleições. Mesmo porque, ambas devem ser vitoriosas: a província tem duas vagas para Senado.
Fraga lembra que a situação de predomínio feminino no maior colégio eleitoral do país pode ser parcialmente explicada em uma lei que outorga um terço das candidaturas às mulheres. Mas a liderança, em si, é por outros fatores:
- É uma combinação de conjuntura com uma imagem às vezes mais honesta e humana que as mulheres passam aos eleitores. Mas, principalmente, reflete o fato de que a disputa política na Argentina requer condições de confiança e lealdade que só os vínculos familiares podem dar. Em última instância, revela que os valores tradicionais e familiares continuam tendo mais força na sociedade argentina do que em outras.