Título: Um cadáver com saúde
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 02/10/2005, Opinião, p. A14

A vitória do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) - um longevo e fiel aliado - para a presidência da Câmara deflagrou uma nova fase para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, em particular, para o Partido dos Trabalhadores. Embora haja suficientes evidências de que o calvário ainda esteja longe do fim, petistas - dentro e fora do Palácio - parecem se ter livrado da primeira etapa do ''corredor polonês'' no qual foram arremessados pelas malandrices de alguns de seus comandantes. Reconhecidas as tentativas forjadas nos gabinetes palacianos de turvar o andamento das investigações, sublinhadas algumas demonstrações de que morubixabas petistas desejam acobertar malfeitos escancarados, convém reconhecer: o PT tem oferecido robustas lições às outras grandes legendas brasileiras. Imerso no pântano que devastou boa parte do seu patrimônio moral, o partido vem revelando uma notável maturidade, por exemplo, nas eleições internas que definirão o novo comando. Goste-se ou não de suas práticas, concorde-se ou não com seus métodos, compartilhe-se ou não da sua soberba, siga-se ou não suas diretrizes, sobram méritos a um partido que define seus dirigentes por meio de uma votação direta, nitidamente sem cartas marcadas, com a espantosa marca de 315 mil militantes presentes às urnas. Se tal feito é relevante diante da experiência de PSDB, PMDB, PFL, PPS e PDT, por exemplo, as eleições internas tornam-se especialmente importantes porque se realizaram no compasso do tormento da mais séria crise sofrida por um partido na história recente da democracia brasileira.

Não é pouco.

Se é preciso atacar o PT pelos erros cometidos (que não foram poucos, insista-se), deve-se elogiá-lo por se submeter à militância para escolher as direções em todos os níveis. Seria bom para a vitalidade partidária do país se os outros seguissem o exemplo. Mesmo os tucanos, os únicos que se igualam aos petistas nas feições programáticas mais definidas, revelaram um péssimo exemplo para os próprios militantes: noticiou-se, há alguns dias, um jantar que reuniu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o prefeito de São Paulo, José Serra, e o senador Tasso Jereissati - daí teria sido selado o nome do cearense como o próximo presidente do PSDB, fruto de um acerto entre grupos de desafetos internos. (Ainda que Jereissati se mostre o nome certo para presidir os tucanos no processo sucessório de 2006.)

Dentre as lições petistas, acrescente-se ainda a dura tarefa de abandonar o idealismo infantil do passado, expurgar as viúvas de utopias caducas (ou deixá-las partir, para o bem de seus avanços) e mudar os rumos de uma legenda que se viu obrigada a taxiar nas pistas da vida real com a obrigação de governar. Um balanço animador para o PT nos últimos anos foi revelar inquestionáveis condições de assumir o poder sem assaltar a estabilidade, provocar traumas políticos e sociais e promover rupturas irresponsáveis. Não é sem ironia, no entanto, que a economia, praticamente a única fortaleza governamental, tornou-se a maior vidraça de ex-petistas desencantados. Não deveria ser.

Um cadáver com saúde, o PT tem, para o futuro imediato, um monumental desafio moral a superar. Eis uma tarefa tão complexa a ser cumprida quanto a necessária redefinição da teoria que o sustenta e o explica.