Valor Econômico, v. 20, n. 4823 27/08/2019. Opinião, p. A10

Inflação brasileira

 Carlos Luque
 Simão Silber
 Roberto Zagha


Nossa inflação foi um problema por mais de um século. Chegou a 16% ao ano durante 1889-93 com um pico de 25% em 1891. Este surto inflacionário foi seguido por muitos outros. Períodos de estabilidade de preços: poucos e curtos. A partir dos anos 1980, com o segundo choque do petróleo, a inflação se descontrolou, chegando a 100% ao ano. Depois de vários planos que deram resultados temporários, a estabilização fiscal de 1993, o Plano Real e o "tripé" conseguiram estabilizar os preços de maneira durável.

Mas o espectro da inflação continuou dominando o país. Como explicar a política de taxas de juros do Banco Central? Com a retomada decepcionante dos últimos anos seria adequado o BC seguir o exemplo dos bancos centrais dos EUA, Europa e Japão. Estes bancos centrais reduziram suas taxas de juros reais para níveis negativos e sinalizaram que a política monetária por si só não poderia reanimar suas economias: políticas fiscais e monetárias expansionistas ambas são necessárias.

A decisão de reduzir a Selic a 6% indicando possíveis reduções adicionais é excelente. Mas não podemos esquecer que o excesso de juros pagos ao longo dos últimos anos comprometeu as finanças públicas e inibiu por completo os investimentos públicos. Certamente a trajetória de crescimento teria sido diferente. É importante agora que a redução de juros seja acompanhada por políticas fiscais expansionistas que permitam estimular nossa economia.

Como no caso dos EUA, UE e Japão a prioridade no Brasil é de fato a adoção de políticas fiscais e monetárias expansionistas. As condições são favoráveis para uma expansão dos gastos privados e públicos em nossa dilapidada infraestrutura, financiados por um programa ambicioso de privatização e concessões e emissão de títulos do governo de longo prazo. A "regra de ouro" permite este endividamento e o Tesouro pode se endividar a taxas de longo prazo que estão em queda.

Mas apesar da evidência dos últimos anos, nos quais a dívida pública aumentou e as taxas de juros e inflação caíram, perdura o temor de que a expansão de gastos com infraestrutura possa elevar a relação dívida/PIB e ameaçar a estabilidade de preços. A relação dívida/PIB pode ter significados diferentes dependendo da conjuntura. Uma coisa é a elevação dessa relação numa economia deprimida, taxas de desemprego elevadas e incerteza dominando os agentes econômicos. Outra é o comportamento dessa relação no quadro de um programa de investimentos públicos bem estruturados que permitam recuperar a trajetória de crescimento. Mesmo que a relação dívida/PIB se eleve no curto prazo será vista pelos agentes econômicas numa perspectiva completamente diferente.

Similarmente a taxa de inflação, dentro de certos intervalos, tem significados distintos dependendo do comportamento geral da economia. Uma inflação de 2% tem um significado muito distinto numa economia estagnada do que uma de 4% a 6% numa economia em crescimento. A ameaça de mais uma década de crescimento anêmico e desemprego alto é real. É urgente um programa de recuperação

As causas de inflação são múltiplas e variam dependendo de situações específicas. Os modelos que a explicam também variam. A inflação dos anos 1889-93, anos do "encilhamento", foi devida a bancos privados que podiam emitir moeda livremente e fizeram-no sem restrições. Em outros períodos a causa foi expansão da demanda além da capacidade de oferta, rigidez da oferta, expectativas de desvalorização, indexação, falta de confiança na capacidade do Tesouro de honrar a dívida pública, ou aumentos de salários mais rápidos do que aumentos de produtividade.

Dependendo do período alguns destes fatores foram mais importantes do que outros. O debate entre os que acreditam que a inflação tem sua origem na economia real e os que acreditam que ela provém da expansão monetária é analiticamente um dos mais interessantes e importantes na teoria e prática da economia. Este é um debate que foi vigoroso no Brasil e voltou à tona nos EUA e Europa depois da crise de 2008.

Nos países desenvolvidos desde os anos 80, linhas de investigação teórica concluíram que políticas monetárias contracionistas podem ser incapazes de combater a inflação, que o papel das expectativas é fundamental, que a inflação pode ter raízes fiscais e que nestes casos políticas monetárias contracionistas podem acelerar a inflação. Um exemplo bem conhecido no Brasil é o do ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, que demonstrou no começo dos anos 2000 que altas taxas de juros, ao levantar dúvidas sobre a capacidade do governo de honrá-las, poderiam levar a uma fuga do real e acelerar a depreciação e a inflação. Resultados exatamente opostos aos convencionalmente previstos. Estas ideias ressurgiram nos últimos anos no contexto, não de combate à inflação, mas de combate à deflação, quando se tornou evidente que sem políticas fiscais expansionistas os EUA, Europa e Japão não conseguiriam sair da recessão.

Apesar da riqueza dessas discussões e a complexidade associada a um diagnóstico do que causa a inflação, a política macroeconômica continuou refratária a novos desafios. Em 2015, chegou-se ao ponto de aumentos de preços administrados serem interpretados como resultantes de expansão de demanda, quando a economia já estava exibindo sinais de recessão.

As promessas de retomada da economia pela política fiscal convencional não se realizaram. É também improvável que se realizem com a reforma da previdência, os acordos comerciais com a União Europeia ou a reforma tributária. Nenhuma destas reformas será suficientemente poderosa para estimular a economia de maneira significativa. A ameaça de mais uma década de crescimento econômico anêmico e desemprego alto é real. Um programa de recuperação econômica se torna mais urgente a cada dia que passa.

Este programa deveria primeiro ter como objetivo principal o crescimento a taxas de pelo menos 4% sustentadas no longo prazo. Isto requer uma estratégia de crescimento baseada na exportação de manufaturados. O que por sua vez requer uma taxa de câmbio depreciada e a abertura comercial. Taxas de juros reais menores e um programa ambicioso de investimento em infraestrutura seriam dois elementos essenciais desta estratégia. Finalmente para assegurar a sustentabilidade desta estratégia por um período de tempo prolongado será importante assegurar sua sustentabilidade fiscal. Isto significa eliminação gradual dos incentivos fiscais que custam ao erário 4% do PIB ao ano e aumentar a tributação sobre as camadas de renda mais altas.

É verdade que o risco de aceleração da inflação não é zero e políticas monetárias e fiscais expansionistas poderiam reativá-la. Mas esta incerteza não justifica a continuação da situação econômica na qual o pais se encontra. Um futuro compatível com as aspirações da população exige repensar nossas políticas monetárias e fiscais e mudar de rumo.