Valor Econômico, v. 20, n. 4827 31/08/2019. Política, p. A10
Regulação volta à berlinda com Bolsonaro
Malu Delgado
Ao se confrontar com as agências reguladoras, o presidente Jair Bolsonaro levanta dúvidas sobre o modelo de regulação existente no país, ironicamente também já questionado por governos petistas. Paradoxalmente, o presidente critica uma política que é vista como eficaz pelos liberais que integram sua própria equipe econômica. Bolsonaro afastou o presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine) Christian de Castro no último sábado, cumprindo uma decisão judicial, mas já havia feito ataques à política de audiovisual assim como ameaçou algumas vezes fechar não apenas este órgão como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em seu discurso, deixa clara a intenção de interferir politicamente nas agências reguladoras. Há três dias, defendeu a indicação de um diretor evangélico para a Ancine, que soubesse recitar de cor versículos bíblicos.
Diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV-CERI), a professora Joisa Dutra observa que é intrigante ver como os questionamentos feitos por Bolsonaro também ocorreram no primeiro governo do petista Luiz Inácio Lula da Silva. Sem entrar no mérito da retórica do presidente, a professora sustenta que a prática comprova a força do modelo das agências reguladoras, e não seu enfraquecimento: "O Ministério da Economia, por exemplo, tem demonstrado uma compreensão muito clara do papel das agências, assim com o Ministério de Minas e Energia." As agendas desses ministérios, enfatiza, estão ligadas ao marco regulatório do gás natural e à necessidade de reforma e expansão das obras de saneamento. "Essas duas reformas têm sua implementação calcada em agências reguladoras. Uma coisa é o discurso, outra é a prática", pontua.
Ex-diretora da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), Joisa Dutra acredita que o modelo das agências reguladoras está consolidado e que as críticas sobre contaminação política e falta de independência decisória refletem dificuldades presentes no próprio Executivo. A sociedade, observa, tem exigido aperfeiçoamento do establishment e do sistema de representação, e a revisão das agências reguladoras é parte disso. "O que importa mesmo é a disposição da Presidência, que é quem indica [os diretores], e do Senado, que é quem sabatina", diz. Esses dois atores, observa, podem aumentar ou reduzir o custo de indicações políticas e exercer, ou não, seu papel de "check and balance".
De acordo com Salama, infelizmente há duas discussões sobre agências que caminham em paralelo no Brasil: de um lado, a questão normativa e da eficácia econômica, e, do outro, a pequena política, que envolve as indicações, os vetos, e esquemas ilícitos e de corrupção. Salama diz que já foi grande entusiasta das agências, mas hoje é cético e "está em busca de uma fé", brinca. Ele lembra que as agências no Brasil foram criadas na década de 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso, na esteira das privatizações e com a revisão do papel do Estado: "Na época a coisa foi vendida desse jeito: com as agências, você vai tirar a política da regulação, fazer regulação com técnicos e, portanto, todo esse percurso horroroso de bênçãos políticas, pagamentos escusos, troca de favores e tudo mais vai ser minimizado porque você vai ter um diretor técnico." Com o PT no poder, passou-se a questionar a eficácia do modelo por uma visão ideológica, diz o professor, de que "as agências seriam capturadas pelo setor privado": "Isso não é, em si, uma mentira. Há algo de verdadeiro e algo de falso nisso. O que é verdadeiro: as agências foram feitas para serem capturadas pelo setor privado. Tenho absoluta convicção disso."