Valor Econômico, v. 20, n. 4828 03/09/2019. Opinião, p. A10

Securitização em exame na Câmara

 Leonardo Ribeiro


 

Com a aprovação da reforma da previdência, a Câmara dos Deputados poderá se dedicar a outros temas econômicos relevantes. Um deles pode ser o PLP 459, que moderniza o sistema de cobrança de impostos ao autorizar a venda de recebíveis da dívida ativa. A medida tem potencial para elevar a arrecadação dos três entes da Federação em R$ 107 bilhões. Os recursos somente poderão ser gastos em previdência e investimentos.

Nos Estados Unidos, quando o proprietário de um imóvel não paga o imposto de propriedade, o governo local pode emitir um certificado de dívida atrelada ao imposto não pago. Qualquer investidor pode comprar esse título - com juros que variam entre 18% e 36% - com a garantia de ficar com o imóvel se o devedor do imposto não pagar a dívida tributária.

Estados e municípios brasileiros não têm a mesma autonomia fiscal dos governos locais americanos. Não podem emitir títulos públicos. Por esta razão, o PLP 459 inova ao criar uma nova sistemática de cobrança de impostos que se baseia na venda do fluxo dos créditos tributários para a chamada securitização da dívida ativa.

Cabe esclarecer que a dívida ativa é um ativo do setor público que representa o conjunto de direitos ou créditos vencidos em favor da Fazenda pública. Em outras palavras, corresponde ao direito do Estado de receber impostos não pagos. O contribuinte deixa de pagar o imposto e parcela a dívida tributária junto ao Fisco. Essa dívida representa um ativo do setor público, escriturado como "Dívida Ativa". A securitização, por sua vez, é uma prática financeira de agrupar ativos financeiros e de convertê-los em títulos negociáveis no mercado.

O entendimento desses conceitos facilita a compreensão do PLP 459. Se aprovado no Congresso, o setor público ficaria autorizado a alienar ao setor privado o fluxo de recursos referente a impostos que não foram pagos no passado e que se encontram registrados na contabilidade pública. Em contrapartida, a empresa que adquirir esse fluxo poderá securitizar esses ativos emitindo títulos ao mercado que são remunerados à medida que as dívidas tributárias forem pagas pelo contribuinte.

Dados oficiais indicam que, em 2018, havia R$ 3,573 trilhões registrados em "Dívida Ativa" no balanço contábil dos três entes da Federação. Na União, o valor foi de R$ 2,181 trilhões, alcançando R$ 1,392 trilhão no demais entes, sendo R$ 947 bilhões na contabilidade dos Estados e R$ 445 bilhões nos municípios. O devedor de impostos atrelados a uma dívida securitizada não poderá refinanciá-la. É pagar ou ficar inadimplente

Estima-se que 10% do estoque total (R$ 3,573 trilhões) sejam passíveis de operações de securitização (R$ 357,3 bilhões). Esse é o valor do fluxo de recursos que está sendo cobrado pelas administrações tributárias e que poderia ser cedido para o setor privado. Se optarem por receber esse valor à vista, os governos poderiam arrecadar algo em torno de R$ 107 bilhões. Para a União, Estados e municípios, seriam R$ 66 bilhões, R$ 28 bilhões e R$ 13 bilhões, respectivamente.

É essencial compreender que o PLP 459 autoriza a cessão de direitos lançados contabilmente no ativo do setor público. Rebate-se assim uma das críticas que se tem ouvido sobre o projeto. Não se trata de vender impostos futuros, mas, sim, de ceder um fluxo de impostos não pagos no passado. O dinheiro, em verdade, já deveria ter entrado nos cofres do governo. Isso nada tem a ver com antecipação de receitas. Há um ativo muito bem identificado e caracterizado e, como tal, ele pode ser vendido.

Além disso, o PLP 459 é claro ao autorizar somente as operações de securitização que sejam definitivas. Não é uma operação de crédito. Não há qualquer espécie de compromisso financeiro para o governo em decorrência da alienação dos fluxos da dívida ativa. É uma operação de alienação de ativos como qualquer outra. Os recursos obtidos com a venda dos recebíveis somente poderão ser gastos com investimentos e previdência. Em obediência ao artigo 44 da Lei de Responsabilidade Fiscal, os recursos decorrentes de alienação de ativos não podem ser destinados para financiar despesas correntes, exceto aportes em sistemas de previdência.

A securitização da dívida ativa contribui também para melhorar o processo de cobrança de impostos no país. Há uma cultura de não pagamento de dívida tributária por parte do contribuinte, que fica na expectativa de um novo programa de parcelamento com condições especiais para pagamento. Como os direitos alienados deixariam de compor o ativo do setor público, o devedor de impostos atrelados a uma dívida securitizada não poderá mais refinanciá-la. É pagar ou ficar inadimplente.

A Receita Federal já demonstrou que os parcelamentos especiais são ações que reduzem o índice de quitação de dívidas tributárias. Na maioria dos casos, o contribuinte fica na expectativa de novos programas de parcelamento e opta por ficar novamente inadimplente. Dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelam dados eloquentes: em outros países o período máximo de parcelamento é de 24 meses, contra 240 meses no Brasil.

Nessa esteira, o PLP 459 amplia os instrumentos de cobrança das administrações tributárias. Informações cadastrais e patrimoniais de devedores de tributos poderão ser requisitados a órgãos e entidades do setor privado que operem cadastros e registros de bens e direitos. O projeto também obriga um compartilhamento de informações entre entidades do poder público que ajudarão o fisco a cobrar as dívidas com maior eficiência.

A securitização da dívida ativa representa uma nova forma de cobrar impostos. São novos recursos que ingressarão nos orçamentos das três esferas de governo - União, estados e municípios, ampliando a capacidade e a autonomia fiscal do poder público em um contexto de forte crise econômica. O fisco se tornará mais responsável e capacitado para cobrar daqueles que sonegam tributos.