Título: Patrimônio na berlinda
Autor: Bianca Tinoco
Fonte: Jornal do Brasil, 03/10/2005, Caderno B, p. B1

Comissão de Ética da Presidência da República delibera hoje em Brasília, durante sua reunião mensal, um dos poucos processos enviados a ela pelo Ministério da Cultura (MinC) durante a gestão Gilberto Gil. Responsável por avaliar e indicar as medidas cabíveis em casos de procedimento polêmico no âmbito dos ministérios, ela discutirá um contrato assinado este ano pelo presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o antropólogo Antonio Augusto Arantes Neto. No jogo burocrático entre os dois órgãos, pouco se revela - o MinC não comenta o assunto porque agora o dossiê sobre o caso está em uma instância superior, e a Comissão de Ética não se pronuncia antes da reunião de hoje. A hipótese confirmada por funcionários do MinC, entretanto, é de que se trata de irregularidades na participação do Iphan no Ano do Brasil na França - mais especificamente com o espetáculo Villa em movimento, em 13 de julho passado.

Apresentado como uma das homenagens a Heitor Villa-Lobos no Carreau du Temple, onde foi sediado o Espaço Brasil, o espetáculo de dança com direção da coreógrafa Marília de Andrade é uma adaptação de Impressões brasileiras, obra encenada no centenário de nascimento do compositor, em 1988. Há, entretanto, um ponto estranho na contratação: Marília, filha do modernista Oswald de Andrade, é também mulher de Arantes Neto.

Nos corredores do MinC, circula a suspeita de nepotismo pela contratação da coreógrafa. Os boatos, não confirmados até o momento, vão mais fundo: apontam que o presidente do Iphan usou recursos do órgão para acompanhar Marília a Paris, um interesse particular. Comunicado sobre o processo que envolve seu nome na sexta-feira, em decorrência da reportagem do JB, Arantes Neto preferiu aguardar a liberação do parecer da Comissão de Ética para comentar o assunto. Antropólogo formado na Unicamp, mestre em Ciências Sociais e PhD em Antropologia Social, pela Universidade de Cambridge, ele lida com iniciativas de patrimônio desde a década de 70.

- Seria prematuro eu fazer qualquer pronunciamento antes da manifestação da comissão. Eu gostaria pelo menos de ouvir a acusação, porque nem a conheço - afirma.

O presidente do Iphan, aparentemente, já sabia que estava sob suspeita:

- A pedido do ministério, fiz uma resposta por escrito sobre o que eles me solicitaram. Mas posso assegurar que não há nada em minha conduta fora do código de ética do Iphan.

Presente com Arantes Neto ao lançamento do Projeto Tapume do programa Monumenta, na última quinta-feira na Praça Tiradentes, o ministro Gilberto Gil disse que as suspeitas sobre o presidente do Iphan são novidade para ele.

- Não tenho conhecimento, mas toda a documentação necessária a qualquer investigação está disponível no ministério - garantiu o ministro.

À boca pequena, a informação que circula é a de que Gil não só teria ficado sabendo da viagem de Arantes como teria pedido ao secretário-executivo do ministério, Juca Ferreira, que chamasse o presidente do Iphan para dar explicações. Procurado pelo JB, Ferreira estava em viagem ao exterior e não pôde falar. Gilberto Gil nega a atitude. Mas admite que a relação entre o MinC e o Iphan não é das mais tranqüilas.

- O Iphan é um órgão historicamente difícil, com aspectos que precisam ser renovados - avalia Gil.

Um episódio no início do ano teria gerado desconforto entre o ministro e Arantes Neto, segundo fontes ligadas ao MinC. Gil, como ele mesmo confirma, fez um convite para que o presidente do Iphan deixasse o cargo e representasse o Brasil nas ações internacionais da Unesco. A negativa de Arantes teria feito o ministro chorar em público, durante uma reunião. Gil não desmente a cena:

- Não sei, nem me lembro. São tantos pequenos fragmentos no meu dia-a-dia, talvez tenha acontecido. Preciso que alguém me refresque a memória.

Nomeado presidente do Iphan em 20 de março do ano passado, Antonio Augusto Arantes Neto havia entrado na instituição quatro meses antes, como diretor do Departamento de Bens Imateriais, voltado às manifestações populares. Neste ano, ele administra uma dotação de R$ 35,6 milhões, dos quais R$ 27,9 milhões foram liberados até o mês passado. De acordo com os dados fornecidos pelo Iphan, os recursos para os 12 museus especiais e 23 regionais - R$ 13,5 milhões do projeto Museus Memórias e Cidadania - já foram todos dirigidos às instituições.

Informado de que seu nome tem sido associado à distribuição de verbas mais generosas aos diretores com os quais tem relações de amizade, Arantes Neto refutou com veemência a hipótese:

- Os recursos dos museus são geridos pelo Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan. A mim, cabe formular diretrizes e avaliar resultados.

Parte do descontentamento relacionado à sua gestão, desconfia Arantes Neto, pode dever-se às mudanças administrativas recentemente realizadas pelo Iphan. Em reunião com os 27 superintendentes regionais, ele recebeu o pedido de afastamento de três diretores. A transformação começa esta semana, com a saída de Sista Souza dos Santos, chefe da Procuradoria Jurídica do Iphan - por pura questão de rearranjo, diz Arantes.

- Há uma insatisfação dos superintendentes com as áreas de administração, jurídico e gabinete do instituto. A estrutura do Iphan é inadequada à realidade da casa, mas só poderíamos mudá-la de modo sensível por meio de decreto ou lei. As pessoas estão nos cargos há muito tempo, perdeu-se um pouco a noção de até que ponto vai a instituição, até que ponto é o funcionário que se pronuncia. A entrada no ano que vem dos 148 novos concursados oxigenará o ambiente - diz, ressaltando que mais de 11 mil pessoas disputam as 148 vagas, que podem crescer para 222 de acordo com os planos do presidente do Iphan.