Valor Econômico, v. 20, n. 4834 11/09/2019. Opinião, p. A11

A desigualdade de renda preocupa?

 Dani Rodrik 


 

No início das aulas, a cada outono americano, provoco meus alunos com a seguinte pergunta: É melhor ser pobre em países ricos ou rico em países pobres? A questão normalmente gera debates consideráveis e inconclusivos. É possível, porém, fazer uma versão mais estruturada e limitada dessa pergunta, para a qual há uma resposta definitiva.

Vamos concentrar-nos na questão da renda e presumir que as pessoas apenas ligam para seu próprio nível de consumo (sem se importar para a desigualdade e outras condições sociais). "Ricos" e "pobres" são os que estão entre os 5% primeiros e os 5% últimos na distribuição de renda, respectivamente. Os países pobres contam com dados bem mais escassos, mas é razoável presumir que neles os 5% mais ricos recebam 25% da renda nacional.

Da mesma forma, vamos presumir que países ricos e pobres são os que estão entre os 5% mais acima e 5% mais abaixo em termos de renda per capita. Em um país pobre típico (como Libéria ou Níger), ela é de cerca de US$ 1 mil, enquanto em países ricos típicos (digamos, Suíça ou Noruega) é de US$ 65 mil. (Essas rendas estão ajustadas pelos diferenciais de custo de vida, ou poder de compra, para que possam ser comparadas diretamente).

Assim, podemos calcular que uma pessoa rica em um país pobre tem renda de US$ 5 mil (US$ 1 mil x 0,25 x 20), enquanto uma pessoa pobre em um país rico ganha US$ 13 mil (US$ 65 mil x 0,01 x 20). Mensurado pelo padrão de vida material, uma pessoa pobre em um país rico ganha mais do que o dobro que uma pessoa rica em países pobres.

O resultado costuma surpreender meus estudantes; a maioria espera o contrário. Quando imaginam pessoas ricas em países pobres, pensam em magnatas vivendo em mansões com um séquito de empregados e uma frota de carros caros. Embora certamente essas pessoas existam, o mais provável representante típico dos 5% mais ricos em países muito pobres seria um burocrata de nível médio no governo.

A maior lição dessa comparação é destacar a importância da diferença de renda entre países em relação à iniquidade dentro dos países. Na aurora do crescimento econômico moderno, antes da Revolução Industrial, a desigualdade mundial se explicava quase exclusivamente pela desigualdade dentro dos países. A diferença de renda entre Europa e as partes mais pobres do mundo era pequena. À medida que o Ocidente se desenvolveu no século XIX, a economia mundial sofreu uma "grande divergência" entre o núcleo industrial e a periferia produtora de bens primários. Durante boa parte do período pós-guerra, a maior parte da desigualdade mundial já se devia à diferença de renda entre países ricos e pobres.

A ascensão dos populistas no Ocidente tem sido alimentada em parte pela tensão entre os objetivos de equidade nos países ricos e os padrões de vida mais altos nos países pobres. O aumento no comércio entre eles contribui para a desigualdade salarial doméstica

A partir do fim dos anos 80, duas tendências começaram a mudar esse quadro. Primeira, encabeçadas pela China, muitas partes das regiões retardatárias começaram a ter crescimento econômico bem maior do que os países ricos do mundo. Pela primeira vez na história, o morador médio de um país em desenvolvimento estava ficando rico mais rápido do que na Europa e América do Norte.

A outra foi que a iniquidade começou a crescer dentro de muitas economias avançadas, especialmente naquelas com mercados de trabalho menos regulamentados e baixa proteção social. O aumento da desigualdade nos Estados Unidos foi tão profundo que não está mais claro se o padrão de vida do americano "pobre" é maior do que o dos "ricos" nos países mais pobres (definindo pobres e ricos da mesma forma que no começo do texto).

Essas duas tendências apontavam em direções contrárias em termos de desigualdade mundial geral - uma a diminuía enquanto a outra a aumentava. Ambas, porém, aumentavam a desigualdade dentro dos países, revertendo uma tendência ininterrupta que se observava desde o século XIX.

Em vista dos dados incompletos disponíveis, não podemos ter certeza quanto às proporções respectivas de desigualdade dentro e entre países na economia mundial de hoje. Mas em estudo ainda não publicado, baseado na Base de Dados Mundial da Desigualdade, Lucas Chancel, da Paris School of Economics, estima que até 75% da atual desigualdade mundial se deve à desigualdade dentro dos países. Estimativas históricas de outros dois economistas franceses, François Bourguignon e Christian Morrison, indicam que a iniquidade dentro dos países é a maior desde o fim do século XIX.

Essas estimativas, se corretas, sinalizam que a economia do mundo cruzou um marco importante, que exige revisitar os objetivos prioritários das políticas econômicas. Há muito tempo, economistas como eu vêm dizendo que a forma mais eficiente de reduzir a disparidade de renda mundial seria acelerar o crescimento econômico dos países de baixa renda. Cosmopolitas em países ricos - normalmente profissionais ricos e de alta capacitação - podiam reivindicar que tinham estatura moral quando menosprezavam os receios dos que reclamavam sobre a desigualdade doméstica.

Mas ascensão do nacionalismo populista ao longo do Ocidente tem sido alimentada em parte pela tensão entre os objetivos de equidade nos países ricos e os padrões de vida mais altos nos países pobres. O aumento no comércio entre economias avançadas e os países de baixa renda tem contribuído para a desigualdade salarial doméstica. E provavelmente a iniciativa que teria mais peso isoladamente no aumento das rendas no resto do mundo seria permitir um fluxo maciço de trabalhadores dos países pobres para os mercados de trabalho dos países ricos. Isso não seria uma notícia nada boa para os trabalhadores dos países ricos com salários mais baixos e menos formação acadêmica.

As políticas das economias avançadas que enfatizam a igualdade doméstica, no entanto, não precisam ser nocivas para os pobres do mundo, nem mesmo no que se refere ao comércio internacional. Políticas econômicas que melhoram a renda nas faixas mais baixas do mercado de trabalho e diminuem a insegurança econômica são boas tanto para a igualdade doméstica quanto para a manutenção de uma economia mundial saudável que dê aos países pobres uma chance de se desenvolver.