Valor Econômico, v. 20, n. 4835 12/09/2019. Opinião, p. A18

Instituições têm de ficar alerta contra ataques à democracia


 

Era previsível, por seu passado e por sua campanha eleitoral, que o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos colocariam em teste as instituições democráticas. Os métodos que estão sendo usados para isso também não surpreendem. Há incentivos indiretos e diretos para que as leis que desagradam a ideologia do presidente sejam solapadas, mesmo sem que o Congresso exerça um papel cúmplice - entre outros motivos, porque não há base de apoio sólida ao governismo no Legislativo, nem o Planalto parece julgar necessário que haja. Um deles, de alto poder destrutivo, é insinuar que o poder de repressão do Estado, que joga papel decisivo no cumprimento das leis e no respeito às instituições, não será mais usado em determinados casos, estritamente por conveniência dos governantes. O exemplo dissolvente deste comportamento manifesta-se nas atitudes de autoridades que jogam no lado do conservadorismo e se escudaram no prestígio eleitoral de Bolsonaro para chegar ao poder.

A censura absolutamente ilegal do prefeito Marcelo Crivella a uma publicação que mostrava cenas de afeto homossexual comunga diretamente com a pauta de costumes bolsonarista, que tem respaldo de algumas igrejas evangélicas. A abulia com que o prefeito encara a administração da cidade, que tem sido ruinosa, só é quebrada por um ativismo comportamental autoritário que fere as leis. O prefeito não tinha o direito de apreender publicações desse e de qualquer outro gênero, tarefa que compete à Justiça. Crivella jogava para a plateia, seu eleitorado, em uma investida para manter-se mais quatro anos à frente de uma cidade pela qual nada fez.

Com menos espalhafato, mas não com mais razão, o governador paulista João Doria mandou suspender a distribuição de apostilas para o 8º ano do ensino fundamental por considerar seu conteúdo uma apologia à "ideologia de gênero". Em liminar, a Justiça mandou suspender o recolhimento.

Eleito na onda bolsonarista, o governador do Rio, Wilson Witzel, já candidato ao Planalto, faz da apologia à violência policial seu programa de governo, até agora o único ponto pelo qual chama a atenção - não se sabe na verdade o que pretende fazer em seu mandato. O governador já sobrevoou Angra dos Reis em helicóptero da polícia durante operação na qual foram baleados alvos suspeitos, com seu entusiasmo endosso.

Esse entusiasmo se irmana com os sinais que emanam do Planalto, de onde Bolsonaro promete indultar policiais "injustiçados", como os envolvidos no massacre do Carandiru e na chacina de Eldorado dos Carajás, por exemplo. O presidente queixou-se da direção da Receita no porto de Itaguaí, região dominada por milícias, também sob investigação da Polícia Federal. Bolsonaro também provocou o afastamento do superintendente da PF no Rio, Ricardo Saadi, sob cuja jurisdição se averigua suposta ligação do senador Flavio Bolsonaro com milicianos.

O presidente Bolsonaro defende que os cidadãos se armem para se defender de bandidos, uma função precípua do Estado. Foi um dos primeiros atos legislativos de seu governo. Seus filhos gostam de armas. O deputado Eduardo Bolsonaro posou para fotos no hospital ao lado do pai com uma pistola na cintura. Provável indicado para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Eduardo reproduziu postagens chamando o presidente Emmanuel Macron de "idiota" e não aparenta ter qualquer ideia do que seja diplomacia.

O presidente aos poucos moveu o terreno segundo seus desígnios nos principais órgãos de investigação e controle. É seu direito escolher o novo procurador-geral da República, Augusto Aras, mas este aparenta ter grande identidade, perigosa para a função, com a pauta de costumes de Bolsonaro. Só o tempo dirá se agirá com independência. O Coaf, após detectar transações suspeitas de Fabrício Queiroz e Flavio Bolsonaro, foi deslocado para o Banco Central. O presidente quer trocar o diretor-geral da PF, para "dar uma arejada".

Como deputado, Bolsonaro sempre defendeu torturadores e a ditadura, período no qual não existia eleição para presidente. Em uma democracia, foi eleito para o cargo, mas não parece ter mudado muito de ideias. Seu filho Carlos, impaciente, vê problemas nesse regime. "Por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos", escreveu em rede social. Se os Bolsonaro veem limites na democracia, é cada vez mais importante - diante de anseios autoritários -, que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso mostrem a eles que o limite é a democracia.