Valor Econômico, v. 20, n. 4836 13/09/2019. Opinião, p. A17

Volta da CPMF, um tiro no pé

Márcio Garcia

 

O ministro da Economia, Paulo Guedes, deu, na segunda-feira (9/9), extensa entrevista ao Valor, na qual enumerou diversos pontos positivos da agenda econômica pós-reforma da Previdência. Afirmou: “Vamos desindexar, desvincular e desobrigar todas as despesas de todos os entes federativos”. Adicionou querer privatizar todas as empresas estatais. Mesmo que o ministro logre obter apenas êxito parcial em sua ambiciosa agenda, já será grande avanço. Oxalá venhamos a finalmente trocar os efêmeros “voos de galinha” do crescimento da economia brasileira das últimas décadas por um processo duradouro de ganhos de produtividade, maior investimento e crescimento sustentado.

A questão mais polêmica da agenda do ministro parece ser a inclusão de uma forma de imposto sobre transações financeiras no bojo da reforma tributária que pretende propor ao Congresso, após a aprovação da reforma da Previdência. Ainda que a recente demissão do secretário da Receita Federal tenha jogado um balde de água fria na proposta de recriar um imposto sobre transações financeiras (ITF), é bom destrinchar o assunto para evitar que reforma tributária venha a envolver equívocos tão graves.Tal qual o imposto inflacionário, o ITF representa uma perda do poder aquisitivo da moeda

Qualquer imposto é ruim, pois cria distorções nas decisões econômicas, o chamado peso morto. Em recente blog, Alexandre Schwarstman explica como tal distorção, inevitável em qualquer imposto, é magnificada pelo fato de o ITF incidir sobre todas as transações financeiras, prejudicando as cadeias de produção mais longas. E quanto maior for a alíquota do imposto, maior será a distorção. Ou seja, todo imposto é ruim, mas o ITF é certamente dos piores.

Um aspecto menos ressaltado da eventual reintrodução de um ITF no Brasil são os efeitos de tal imposto sobre a demanda por moeda, em um mundo de moedas digitais. A função essencial da moeda é facilitar transações. Quando o custo de utilizar a moeda sobe, a capacidade de a moeda desempenhar tal função é prejudicada.

Estamos acostumados a um tipo de fenômeno que eleva o custo de se usar a moeda: a inflação. Quando a inflação é extremamente alta, tal custo torna-se mesmo proibitivo. Hiperinflações são causadas por fuga massiva da moeda. É como se a moeda queimasse a mão. É preciso gastá-la assim que receber. Isto ocorre justamente porque a hiperinflação corrói de forma muito intensa o poder aquisitivo da moeda. Durante o ponto mais intenso da mais famosa hiperinflação, a que ocorreu na Alemanha na década de 1920, os preços dobravam a cada 49 horas!2 Trabalhadores eram pagos duas vezes por dia, e faziam compras na hora do almoço, para evitar preços mais altos no final do dia. 

Devido ao altíssimo custo de usar a moeda durante as hiperinflações, surge o fenômeno da substituição da moeda. Os substitutos da moeda devem poder realizar transações financeiras sem sofrer a corrosão do poder aquisitivo da moeda nacional. Normalmente, uma moeda estrangeira cumpre esse papel. A dolarização que se verificou em vários países latino-americanos no final do século passado é exemplo da substituição da moeda. O substituto da moeda, no caso o dólar norte-americano, deve ter um valor estável (não ter seu poder de compra corroído) e ser aceito por todos em toda parte. À medida que mais pessoas aceitavam o dólar, ele substituía mais intensamente a moeda nacional, e a hiperinflação tendia a se acelerar.

Mas o que tem isso a ver com o ITF? Tal qual o imposto inflacionário, o ITF representa uma perda do poder aquisitivo da moeda. Uma alíquota de 0,40% por transação, como parece que era o plano original do ITF brasileiro, corresponde à perda diária de poder aquisitivo causada por uma inflação de 175% ao ano. E se a frequência das transações for maior do que uma por dia, o efeito seria muito maior. Cinco transações subsequentes por dia, com o ITF incidindo em cascata, bastam para ultrapassar a corrosão de poder aquisitivo da moeda causada por uma inflação de 50% ao mês (ou 12.875% ao ano), o limiar hiperinflacionário estipulado por Philip Cagan.

Tal como a hiperinflação ensejava a procura por substitutos da moeda, o mesmo ocorrerá com o ITF, sobretudo se a alíquota for ainda mais alta. E, no mundo de hoje, há cada vez mais substitutos da moeda, não só sob a forma de moeda estrangeira, mas também com as cada vez mais usadas moedas digitais.

Ou seja, é provável que o ITF ensejasse uma procura por formas de invadi-lo, também via moedas digitais. O ministro afirmou que a lei “(...) tem uma cláusula que diz que um negócio, uma compra de imóveis, por exemplo, só têm validade jurídica para quem recolher imposto”. Tal cláusula poderia talvez impedir que transações de valor elevado, como a compra de imóveis, fossem feitas com dólares ou outro substituto de moeda, mas certamente teria menos eficácia para a grande maioria das transações.

Mais ainda, causaria enorme dor de cabeça e altíssimo custo ao governo. Como sempre acontece, a busca por formas de elidir o ITF colocaria o governo, sobretudo o Banco Central, em um jogo de gato e rato, tentando fechar as brechas que sempre ocorrem e punir os infratores. Recursos muito escassos de regulação e supervisão teriam que ser despendidos para viabilizar a arrecadação do ITF. Por exemplo, especialistas no combate à lavagem de dinheiro seriam redirecionados para combater casos de uso de moeda estrangeira para evadir o ITF, em enorme desperdício.

Outro fator negativo é que poderia também ensejar a informalidade de novos negócios, sobretudo aqueles ligados à internet. Já que os pagamentos seriam feitos em moedas digitais para elidir o ITF, seria melhor não formalizar o negócio para reduzir a chance de ser pego.

Em suma, seria muito melhor que o ministro cumprisse a determinação do presidente de manter a CPMF fora da reforma tributária.