Valor Econômico, v. 20, n. 4948, 27/02/2020. Opinião, p. A10

Presidente flerta com uma crise institucional



O presidente Jair Bolsonaro resolveu trilhar caminhos perigosos. Em dois episódios, ignorou suas obrigações em confrontos políticos potencialmente lesivos à governabilidade. Não houve condenação oficial aos distúrbios causados por policiais em greve ilegal no Ceará. Mais grave foi sua reação após o destempero de Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, que acusou o Congresso de chantagem e aconselhou o presidente a chamar o povo às ruas contra isso. Bolsonaro repassou vídeos de convocações da manifestação contra o parlamento programada para 15 de março.

Como chefe do Executivo, Bolsonaro não deveria cultivar a baderna, a menos que veja dividendos políticos a dela extrair. O estímulo à rebeldia das polícias militares não veio do governo federal, mas do governador Romeu Zema, do Novo, eleito sob a expectativa, já enterrada, de que representasse o que o nome de seu partido proclama. Minas está falida e não paga sua dívida sob proteção de liminar do Supremo Tribunal Federal. Mas Zema propôs 41% de reajuste aos policiais, sem ter o dinheiro. A Assembleia Legislativa aproveitou a prodigalidade e estendeu-a aos servidores.

Os policiais do Ceará realizaram uma paralisação ilegal por aumentos. Além de promover balbúrdia, com membros encapuzados atacando quartéis, a ausência da proteção policial contribuiu para mais de 170 assassinatos no Estado em uma semana.

O Exército foi enviado para garantir a segurança no Ceará, e Bolsonaro, que foi porta-voz das polícias e dos militares em seus 28 anos como deputado, poderia ter ficado quieto, mas resolveu antagonizar adversários políticos locais - Cid e Ciro Gomes -, a exemplo do que fizera com o governo petista baiano, Rui Costa, quando da morte do miliciano Adriano Nóbrega, que tinha familiares lotados no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio.

No mesmo dia em que Cid Gomes foi baleado por grevistas, após uma tentativa aloprada de invadir um quartel, um dos líderes políticos do movimento, o deputado André Fernandes (PSL-CE), almoçara com o presidente em Brasília. Ao assinar decreto para o uso do Exército no Ceará, o presidente voltou a insistir na necessidade do “excludente de ilicitude” para missões de Garantia da Lei e da Ordem. O Congresso já rejeitou o dispositivo, batizado de “licença para matar”, todas as vezes em que o Executivo tentou aprová-lo.

Líderes egressos da polícia, boa parte no PSL, apoiam as demandas policiais. O senador Flavio Bolsonaro chamou os amotinados de “pessoas que estão reivindicando melhores salários”. A ministra Damares Alves, achou a demanda justa e disse que “todo mundo tem o direito à greve”. É inequívoca a simpatia dos grupos em torno do presidente pela algazarra policial.

É direito do presidente da República escolher a forma de se entender com o Congresso para aprovar suas propostas. Bolsonaro não só optou por não ter base governista sólida, como por implodir a única que tinha, o PSL, e esvaziar a Casa Civil, que deveria organizar as relações políticas com o parlamento. Enviou o ministro Ônix Lorenzoni para o Ministério da Cidadania e deixou nos cargos-chave no Planalto apenas milita estranho, mas ou Bolsonaro acredita que eles fariam melhor trabalho de articulação que os políticos, o que parece ingênuo, ou acha que esse trabalho é inútil - em ambos os casos, encrenca na certa.

O movimento lógico, previsível, era que as lideranças do Congresso ocupassem o vácuo deixado pelo fastio do Executivo, aprovando o que julga importante, atendendo demandas de parlamentares e aumentando seu controle sobre o Orçamento. O alvo da atual disputa são R$ 30 bilhões reservados para emendas. Bolsonaro vetou o dispositivo, o Congresso ameaçou derrubar o veto e o Executivo fez um acordo para garantir R$ 15 bilhões para si. O acordo foi bombardeado publicamente, por Augusto Heleno que, sem saber que estava sendo ouvido em solenidade, disse que o Congresso chantageava o presidente e que se deveria chamar o povo às ruas para não deixar o presidente “acuado”.

A posição de Bolsonaro no caso pode ter graves consequências. Ao repassar um vídeo da convocação de manifestações contra o Congresso sugere que apoia ataques a outro Poder da República e reduzir a já estreita margem lhe sobra no parlamento para aprovar as reformas essenciais ao país - além de abrir um alçapão institucional, no qual pode acabar caindo.