Valor Econômico, v. 20, n. 4841 20/09/2019. Valor Investe, p. C8

O estranho mundo dos juros negativos

 Fernando Barrozo do Amaral

 

O chefe do escritório de Tokyo do Pictet Asset Management, Hiroshi Matsumoto, relembra que em meados dessa década seus colegas europeus não conseguiam entender o desproporcional interesse dos investidores japoneses por um fundo de ações gerido por eles que investia somente em companhias de eletricidade e outras concessionárias. “Por que? ”, perguntavam, já que os retornos do fundo eram pouco atrativos se comparados a ações europeias em geral. “Esperem e verão, em cinco anos estarão na mesma situação”, respondia, explicando que por meio dele investidores japoneses tinham acesso a um fluxo estável e recorrente 

Hiroshi estava certo. Hoje, 30% dos títulos que compõem o Barclays Global Aggregate Bond Index, índice de renda fixa global mais usado no mundo, têm rendimento negativo. Se excluirmos os títulos de emissores dos EUA, esse número sobe para 44%. Os exemplos estão por toda parte, da emissão da Siemens no final de agosto, considerada a de juros mais baixos já feita por uma empresa, com os títulos de dois anos de prazo chegando a render -0,315% ao ano, ao recente anúncio do UBS da Suíça que a partir de novembro vai remunerar depósitos acima de € 2 milhões a uma taxa de -0,75% ao ano.

O Japão é o país dos juros negativos por excelência. Precursor da política de juro zero, praticou, ao longo dos últimos 20 anos, taxas levemente positivas ou negativas. E, a partir do início do mandato de Haruhiko Kuroda, em 2013, vem promovendo estímulos monetários recordes, com o título de dez anos do Tesouro rendendo cerca de -0,15%. O fenômeno hoje é também europeu. A Suécia (dez anos a -0,16%) saiu na frente, seguida por países como Holanda, França e Alemanha, cujos títulos de dez anos rendem respectivamente -0,35%, -0,20% e -0,45%.

Mas por que alguém compra um título com rendimento negativo? Há algumas razões possíveis, dependendo do tipo de investidor. Os bancos europeus, por exemplo, têm que pagar 0,5% ao ano para depositarem seus recursos no Banco Central Europeu (BCE).

Ao investirem em títulos de bons emissores que rendam -0,20% ou -0,30% ao ano, estão fazendo melhor negócio do que mantendo seus recursos junto ao BCE. Outros aspectos são a qualidade de crédito e a liquidez. Um “bund” alemão provê ao comprador segurança, pois sabe-se que dificilmente não se receberá o dinheiro de volta, e conta-se com um mercado secundário extremamente líquido. Na eventualidade de uma reversão nos mercados, ativos de maior risco, emitidos por empresas de pior qualidade de crédito, sofrerão mais do que os bunds. Paga-se, dessa forma, por proteção.

Uma terceira opção é uma aposta em juros ainda mais negativos no futuro. Na medida em que isso aconteça, os títulos comprados no nível atual de taxa se valorizarão e beneficiarão quem os comprou.

Rick Rieder, CIO da BlackRock, descreveu em seu blog no início de setembro como chegamos até aqui. Segundo ele, substanciais forças deflacionárias entraram em ação a partir do fim dos anos 70 e início dos 80, quando houve nos EUA o pico do “baby boom”, início das relações diplomáticas e de comércio com a China, o que aprofundou a globalização, e o que aprofundou a globalização, e o fim dos choques do petróleo. Esses fatores, que levaram a um pico inflacionário em 1979, passaram a partir de então a atuar na direção contrária. A eles se juntaram, mais recentemente, novas pressões deflacionárias, como o envelhecimento da população e os avanços tecnológicos.

Como consequência, os BCs não vêm conseguindo atingir suas metas de inflação e têm tido que lutar contra a deflação. Diante da impossibilidade de elevar os preços da economia, Rieder sugere que o próximo passo dos BCs será promover a depreciação monetária, por meio de emissão de moeda, desvalorização cambial e juros reais ainda mais negativos (ou, no caso dos EUA, mais baixos).

Em termos de investimentos, como se posicionar para fazer frente a tal cenário, em que a renda fixa deixa de acrescentar e passa a retirar rendimento dos portfólios? Ainda que a demanda por ativos de risco, como ações, títulos high yield e imóveis, deva se manter, estes, após anos de expansão monetária e juros baixos, já se encontram em patamares recordes. A recomendação de Rieder é a compra de ativos que mantenham seu valor mesmo diante de um enfraquecimento da moeda em que são cotados e que, preferencialmente, tenham alguma limitação de oferta.

Se encaixam nessa categoria: 1) ações de empresas que tenham algum poder de imposição de preço ou rendimentos previsíveis e recorrentes (como os japoneses já sabem há tempos); 2) imóveis em situações em que a oferta não possa ser facilmente expandida; e 3) outros ativos cuja oferta não seja infinita, como ouro e determinadas commodities.

Livros e filmes de ficção científica do século passado nos permitiram vislumbrar os incríveis avanços tecnológicos que estavam por vir. Muito do que faz parte do nosso dia a dia, como smartphones com reconhecimento facial, dispositivos operados por voz e, em breve, carros automáticos, foram um dia somente possível na imaginação de escritores. Nenhum deles, no entanto, previu o desafio que se tornaria no futuro investir recursos com rendimento positivo.